
“As pessoas gritavam em árabe e apontavam o dedo na nossa direção”, relata *João, de 23 anos. “Meu amigo viu que iam me bater e tentou intervir, mas levou um chute”, continua o jovem judeu, ao lembrar como manifestantes pró-palestina o trataram ao caminhar pela Avenida Paulista, em novembro de 2024.
Desde o massacre de 7 de outubro do ano anterior, quando o grupo terrorista Hamas matou cerca de 1250 pessoas em Israel e sequestrou outras 250, atos de antissemitismo — que retratam o ódio contra judeus — têm se tornado mais frequentes em diversos países do mundo, como o Brasil.
Segundo relatório divulgado em 2024 pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) e pela Confederação Israelita do Brasil (Conib), no primeiro mês do conflito entre Israel e Hamas foi percebido “aumento alarmante de mais de 1000%” na quantidade de atos antissemitas registrados no país. Os dados foram comparados ao mesmo período do ano anterior.
A quantidade anual de denúncias, de acordo com a Conib, também cresceu em 2023 e bateu recorde no ano seguinte, com 1.788 registros de atos contra judeus no Brasil (veja abaixo, no gráfico divulgado pela Conib, percentual das denúncias por estado). O aumento foi de 350% em comparação à 2022.
“Uma perigosa escalada antissemita”, alerta a presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul, Daniela Russowsky Raad, ao citar como exemplo o protesto registrado no último dia 9 de junho, em frente à FIRS.
“A entidade que representa a comunidade judaica gaúcha foi alvo de uma manifestação que escancarou, sem disfarces, o antissemitismo”, lamenta. Segundo ela, o ato teve cartazes exaltando terroristas do Hamas e gritos do slogan “do rio ao mar, Palestina livre já”, que pede destruição de Israel.
“Entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo está o único Estado judeu do mundo”, explica a presidente da entidade, apontando que negar a existência desse Estado legítimo é tirar do povo judeu o direito à autodeterminação, garantido a todos os povos. “E o mesmo se repetiu na semana seguinte, dia 15, quando outra manifestação marchou próximo à FIRS”, continuou a líder gaúcha.
Essa segunda ação próxima à entidade, segundo Daniela, também contou com bandeiras do Hamas e do Hezbollah, exaltando uma “resistência” que prega o terrorismo e quer exterminar o povo judeu. “Nossos avós, que vieram ao Brasil em busca de paz, fugindo das perseguições na Europa, se arrepiam ao ver esses registros.”
Influenciadores e políticos têm disseminado mensagens de ódio contra judeus
De acordo com o rabino Gilberto Venturas, fundador do movimento Sinagoga Sem Fronteiras (SSF), que atende todo o país e tem sede em São Paulo, o antissemitismo não é algo cultural do Brasil, pois “a população, em sua maioria, ama Israel e compreende que os que atacam o Estado judeu também têm os cristãos como inimigos”.
No entanto, ele explica que o aumento nos casos se dá, principalmente, devido à disseminação de mensagens de ódio movidas por alguns influenciadores digitais e políticos como o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Ele comparou Israel aos nazistas”, recorda Venturas, em referência à afirmação do mandatário brasileiro em fevereiro de 2024 de que a ofensiva israelense contra o Hamas na Faixa de Gaza se assemelharia ao Holocausto — política de extermínio de judeus implementada pelo ditador alemão Adolf Hitler entre 1941 e 1945.
“Nossos avós, que vieram ao Brasil em busca de paz, fugindo das perseguições na Europa, se arrepiam ao ver esses registros”
Daniela Russowsky Raad, presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS)
Venturas cita ainda a fala de José Genoino, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), que defendeu, em janeiro de 2024, boicote a empresas de judeus, e a postagem do escritor e vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina, Sayid Tenório, a respeito de uma mulher com manchas de sangue na altura das nádegas, levada como refém pelo Hamas.
“Estuprar civil ajuda no que a Palestina?”, perguntou um perfil no X que divulgou as imagens. “Isso é marca de merda”, Sayid respondeu na publicação, apagada tempos depois. No dia anterior, o escritor havia sido fotografado ao lado do ministro de Relações Institucionais do governo Lula, Alexandre Padilha.

“Famílias ricas judias deveriam ser alvos de uma AK-47”, diz estudante de universidade
A disseminação de mensagens de ódio, segundo Venturas, tem resultado, por exemplo, em ataques e situações de assédio moral dentro das universidades. Segundo ele, jovens judeus de diversos lugares do Brasil o procuram com relatos envolvendo “colegas que se apresentam como defensores dos palestinos”.
“E, para piorar, professores e diretoria poucas vezes têm reagido, o que permite a normalização e difusão dessas ideias entre os jovens”, alerta o fundador do movimento Sinagoga Sem Fronteiras (SSF).
Um desses jovens é o estudante de Direito *João, que sofre intimidação frequente de um estudante da universidade. Segundo ele, esse aluno já o chamou de “genocida de crianças palestinas” e costuma fazer piadas antissemitas, afirmando com naturalidade que “famílias ricas judias deveriam ser alvos de uma AK-47”.
“O mesmo aluno, recentemente, apresentou um trabalho vestindo camiseta com símbolo de grupo terrorista”, relatou *João, ao citar ainda que o rapaz pertence a um grupo da universidade que publica diversos posts antissemitas com “os mesmos estereótipos utilizados pelos nazistas”.
Especialistas alertam para atos de ódio e “antissemitismo intelectual” em universidades
Ações de grupos pró-palestina têm se tornado frequentes em universidades brasileiras. Em 27 de maio deste ano, por exemplo, a comemoração pelos atos terroristas de 7 de outubro de 2023 marcou um evento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A reunião contou com membros do MST e de partidos políticos, e do lado de fora do auditório, ainda nas dependências da universidade pública, foram vendidas camisetas do Hezbollah e broches do Hamas.
Já em novembro de 2024, outro grupo de cerca de 20 ativistas interrompeu uma palestra sobre o conflito palestino-israelense, realizada no campus Benfica da Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, com bandeiras da Palestina. Eles também seguravam uma placa com a foto de um dos líderes do grupo terrorista Hamas.
Para o historiador Vicente Dobroruka, professor da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Teologia, grande parte dos grupos que aceitam propagar discursos de ódio contra Israel estão sendo incoerentes com o que eles mesmos dizem acreditar. “Afinal, a ideia antissemita e anti-Israel é muito mais opressora do que qualquer coisa que o capitalismo ocidental já tenha imaginado”, aponta. “É uma confusão total de valores.”
“Se fossem manifestações contra algum grupo de esquerda, na mesma hora seriam tomadas providências”
Vicente Dobroruka, professor da Universidade de Brasília (UnB)
E essa disseminação de ódio, segundo o professor, está crescendo de forma explícita nas universidades. “As manifestações são orquestradas e perigosas”, alerta, pontuando que o Estado não pode tolerar sua continuidade. “Se fossem manifestações contra algum grupo de esquerda, na mesma hora seriam tomadas providências”, aponta.
Além disso, de acordo com Isaías Lobão, doutorando em História pela Universidade de Valência, na Espanha, e docente no Instituto Federal do Tocantins (IFTO), o antissemitismo também está infiltrado nos programas de pós-graduação das universidades e nas editoras que publicam conteúdo acadêmico.
“Muitas vezes se marginaliza o estudo da história de Israel antigo, e são raras as linhas de pesquisa que consideram a relevância histórica e cultural de Israel como civilização do Antigo Oriente”, afirma, ao citar que a tendência é tratá-la como exceção ou mito, enquanto outras tradições recebem reconhecimento.
“Essa omissão não é neutra: ela reflete uma visão enviesada que desvaloriza a contribuição do povo judeu para a história e reforça um preconceito institucionalizado”, aponta, advertindo que se trata de “uma forma sutil, mas poderosa, de antissemitismo intelectual”.
O que tem sido feito contra o antissemitismo no Brasil
Para tentar conter o avanço dos discursos e ações de ódio contra judeus, a Conib informa que tem monitorado os episódios antissemitas, produzido relatórios anuais e dado encaminhamento às denúncias. A entidade (foto abaixo, de Flávio Mello) também afirma que tem buscado conversar com autoridades e organizações da sociedade civil em busca do fortalecimento de valores democráticos e da convivência plural.

Além disso, o Brasil participa como “país observador” na Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), organização intergovernamental composta por 35 países membros — como Estados Unidos e Alemanha —, que têm objetivo de conscientizar a população a respeito do Holocausto para que ele nunca se repita.
Portanto, a presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul, Daniela Russowsky Raad, ressalta que “manifestações antissemitas, travestidas de protestos políticos” não podem ser toleradas no país. “As vozes, especialmente de nossas lideranças políticas, deveriam ser de chamada pela paz, pela coexistência, pelo respeito às diferenças”, diz.
Enquanto isso, judeus têm mantido suas tradições e enfrentado a discriminação. “Não quero fazer parte da geração que tem que se esconder novamente”, afirma o estudante *João, que chegou a parar de usar itens tradicionais da cultura judaica por medo, mas voltou a se identificar como judeu na rua e na universidade. “Estou pronto para lutar pela sobrevivência do meu povo”, finaliza.
*João é um jovem paulista, judeu, de 23 anos, que conversou com a reportagem da Gazeta do Povo, mas pediu para ter sua identidade preservada.