Tenho idade para me lembrar do cotidiano nas calçadas da zona sul do Rio de Janeiro, quando os funcionários dos bicheiros cariocas recolhiam as apostas do dia. Pequenos pedaços de papel com resultados eram colados em postes, sempre sob a garantia de “vale o escrito”. Não passava pela cabeça de qualquer apostador não ser pago por ter acertado na cobra (número 9) ou no cachorro (número 5).
Uma série de vazamentos nos Estados Unidos mostra o quanto os renegados do presente não compreendem que, na era digital, não só vale o escrito, como não se pode rasgar o escrito como um pedaço de papel.
Na terça-feira (21), a Casa Branca retirou às pressas a nomeação de Paul Ingrassia para procurador especial do Departamento de Justiça, depois que o site Politico revelou que o advogado se vangloriou de ter “um lado nazista”.
Nas mensagens de texto mostradas a um repórter, Ingrassia defendia que o feriado em homenagem a Martin Luther King tinha que ser cancelado e “atirado no sétimo círculo do inferno”. Ingrassia, cuja reputação já era controversa, continua a trabalhar para a Casa Branca, mas os textos acenderam a luz vermelha para senadores republicanos que teriam que votar sua indicação.
Na semana passada, a liderança do partido dissolveu o grupo Jovens Republicanos de Nova York, depois que o mesmo Politico revelou mensagens trocadas no Telegram com republicanos de outros estados. A designação de jovens republicanos é elástica, vai dos 18 aos 40 anos.
“Adoro Hitler“, confessava um idoso pimpolho. Outro se referia aos compatriotas negros como “macacos” e o vice-presidente do grupo nova-iorquino classificava estupro de um ato “épico”.
No último dia 11, Lindsey Halligan, promotora federal interina e ex-candidata a Miss Colorado, passou 33 horas disparando mensagens de texto privadas para uma repórter que cobre o sistema judicial no site Lawfare, por causa da cobertura sobre um processo do governo Trump contra a atual promotora estadual de Nova York, Letitia James.
Halligan usou a plataforma Signal e programou as mensagens para desaparecer após um intervalo, torcendo para a jornalista não arquivar o conteúdo. Entre as obrigações dos oficiais do Departamento de Justiça está a de proteger o sigilo de investigações federais.
E não devemos esquecer o infame Signalgate de abril, quando o editor da revista The Atlantic, Jeffrey Goldberg, foi incluído por engano num chat sobre os planos de bombardear o Iêmen. O grupo incluía também o secretário de Defesa, Pete Hegseth, que achou por bem convidar sua mulher e seu irmão para revelar segredos militares que poderiam ter colocado em risco a vida dos pilotos envolvidos no ataque.
Sabemos que a vergonha deixou de pesar na consciência de figuras públicas neste milênio. Mas surpreende a tagarelice digital dos orgulhosos novos nazistas, antissemitas e misóginos recebida por detentores de poder que normalizam o extremismo.
Quando os textos dos “jovens” republicanos vazaram, o vice-presidente J. D. Vance deu de ombros e atacou críticos por não compreenderem que jovem fala besteira. O mesmo Vance que, aos 32 anos, em 2016, mandou mensagem de texto a um amigo sugerindo que o atual presidente americano seria “o Hitler da América”.
A literatura psiquiátrica que define variações do TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) precisa examinar a compulsão à confissão digital.
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