Se há imagem que define o movimento antidemocrático do 8 de janeiro é a do indivíduo que baixou as calças e defecou no Palácio do Planalto. Pensei que Donald Trump pertence à mesma linhagem quando vi o vídeo gerado por Inteligência Artificial que ele compartilhou nas suas redes e no qual, coroado como um rei, voa em uma caça e despeja toneladas de fezes em cima dos manifestantes que se opõem a ele.
Essa pulsão escatológica está para lá da oposição política. Já não há ali certo ou errado, argumento ou contra-argumento, mas apenas uma vontade de humilhar, aviltar e conspurcar. Lamento que a muitos o tema possa ser repugnante, mas ele tem de ser pensado.
A grande divisão atual é, afinal, entre quem quer ter fé na democracia e quem lança fezes na democracia. O que explica isto?
Para os primeiros, a relação com o adversário é mediada por uma série de compromissos. Eu posso não concordar com ele, mas o argumento tem mérito. Nós estamos em campos opostos, mas ele tem direito de existir. E por aí afora, num conceito do jogo democrático que deve o seu fundamento às regras, à cordialidade e ao respeito mútuo. É preciso ter fé, porque é preciso confiar que o outro, discordando de nós em tanta coisa, concorde em achar o mesmo sobre esses fundamentos, pelo menos a maior parte do tempo.
Para os que lançam fezes na democracia, nada disso existe. O adversário é apenas alguém que merece ser ritualmente conspurcado. Usar um argumento já seria respeitoso demais; mesmo o insulto e a ofensa já perderam o efeito que tinham há uns anos. Chegamos agora ao mais baixo nível da política, aquele que nem ditadores ridículos tinham a coragem de alcançar: a ideia de que os adversários do grande homem merecem apenas apanhar com umas toneladas de bosta.
A grande questão é: por que razão isto é eficaz? Não se pode dizer que a posição de um Trump enquanto grande defecador tenha um apelo majoritário. Mas ele é suficientemente popular para que os seus sequazes aplaudam e reproduzam o gesto. Porque não é unanimemente rejeitado?
A razão custa a dizer e é raramente assumida, mas não vejo outra: porque todos temos um pequeno Trump dentro de nós, mais ou menos controlado, e nele reside uma inveja da sua total, ainda que boçal, liberdade. Com seria se cada um de nós pudesse dizer a todo o momento tudo aquilo que lhe passa pela cabeça, exigir o constante saciar das suas vontades, promover desbragadamente o seu narcisismo e a sua vaidade?
Nenhum de nós tem coragem de romper com as suas normas de boa educação e por isso, no fundo, invejamos Trump. Em termos psicanalíticos, ele não tem superego, nada o reprime nem educa; é puro id, todo ele totalmente investido na satisfação dos desejos de cada momento. Nenhum de nós é assim. Mas, ao mesmo tempo, já todos devemos ter sonhado ser assim.
Em tempos que já se vão, existia um personagem para convocar a violação de todos esses interditos. Era o bobo da corte, que criticava o imperador estando isento do medo de qualquer consequência. Trump é o imperador que é o seu próprio bobo. De quem ele ri é de nós todos. E há quem goste.
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