O oba-oba acabou. Escrevo este texto do quarto de um hotel em Londres, onde vim trabalhar e observar de perto a crise que assola o mercado de arte na capital britânica. O fenômeno não é local. O mundo da arte enfrenta uma crise –e não só financeira. É uma crise de identidade. Ele precisa, urgentemente, de um divã.
Depois de mais de 25 anos no setor –passando por museus, casas de leilão e, há mais de uma década, à frente da minha própria galeria–, posso afirmar sem hesitação: nunca vivi um momento como este.
Colecionadores, galeristas, curadores e instituições parecem navegar sem bússola, incertos quanto à direção a seguir. Paradoxalmente, talvez seja exatamente o que precisávamos. Sinto que, pela primeira vez após anos de ascensão ilimitada, o mercado admite sua própria fragilidade e, mais importante, as pessoas estão dispostas a falar sobre o assunto. Este é, a meu ver, o melhor sinal de otimismo em muito tempo.
Há uma contradição evidente na atual crise, já que nunca se falou tanto sobre arte nem houve tanta gente interessada e engajada. Quando entrei nesse mercado, em 1997, mal conseguia debater com amigos qualquer aspecto do meu trabalho. Quando havia curiosidade, as perguntas orbitavam roubo e falsificação –ou Romero Britto. Hoje pessoas de toda parte arriscam opiniões sobre a última visita ao Masp, à Pinacoteca ou à Bienal. As redes amplificam o debate, e a arte parece finalmente ter se democratizado.
Essa energia, porém, não se converte em colecionismo. Há menos colecionadores realmente empenhados e mais compradores ocasionais. Apesar de ter crescido o número de famílias e indivíduos adquirindo boas obras, as vendas diminuíram. Existem razões práticas para isso. Manter uma coleção custa caro: conservação, climatização, armazenamento, transporte, seguro —tudo pesa.
Para quem começa a comprar aos 30 ou 40 anos, esses custos tornam-se rapidamente inviáveis. Na geração anterior, a arte era menos cara e, portanto, mantê-la também era mais fácil. Hoje, o preço de tudo que envolve uma coleção reflete diretamente o valor e a complexidade dela.
Soma-se a isso o cenário global incerto. As guerras recentes e a política de tarifas do governo de Donald Trump não apenas esfriam os ânimos do mercado, como criam um clima difuso de preocupação e, de certa forma, de tristeza. O mundo dos negócios anda tenso, e a arte, que sempre reagiu com sensibilidade ao espírito do tempo, sente esse peso.
Vivemos um momento de muito envolvimento, mas pouca posse –o que abala as bases do sistema tradicional de galerias, que depende da rotatividade de obras e de um mercado secundário saudável. Há 20 ou 30 anos, as galerias viviam de poucas exposições e de poucos clientes, que compravam em volume e adquiriam inclusive obras de instalação ou conservação complexa.
Agora, com um calendário abarrotado de feiras, exposições e projetos, além de mais compradores gastando menos por aquisição, as galerias dependem de equipes e investimentos maiores. O custo fixo aumenta, a margem aperta, e a imprevisibilidade cresce.
Outro ponto incômodo é a superoferta de artistas. Não vivemos uma explosão de genialidade capaz de revelar centenas de talentos extraordinários de uma vez. O que houve foi uma queda da régua. É impossível haver tantos artistas excepcionais para ocupar todas as galerias, feiras e bienais que não param de proliferar pelo mundo.
Nesse mar raso, selecionar o joio do trigo é questão de sobrevivência. Daí o crescimento dos consultores de arte, que filtram, organizam e contextualizam as dezenas de catálogos recebidos das galerias –uma função que, historicamente, esteve nas mãos de curadores, feiras e instituições, mas hoje migra para esses mediadores.
Antes, por limitações de espaço físico, as galerias exibiam simultaneamente, quando muito, vinte ou trinta obras. Não existiam smartphones, CRMs na nuvem ou catálogos digitais instantâneos. O galerista não carregava um acervo inteiro no bolso. Hoje é possível oferecer um número virtualmente ilimitado de obras, 24 horas por dia, visíveis em imagens impecáveis. O efeito colateral é a inundação de opções e a consequente perda de urgência do colecionador. Diante do excesso, postergar é uma atitude no mínimo racional.
Apesar de tudo isso, vejo motivos para esperança, especialmente no contexto latino-americano, que vem sofrendo relativamente menos e atraindo um interesse real da comunidade internacional. Curadores, colecionadores e instituições buscam narrativas críticas, diversidade cultural e vozes locais. Artistas do Brasil, Argentina, Colômbia, Paraguai, México e de outros países conquistam espaço global e valores expressivos e, se fizermos tudo com cautela, a tendência é fortalecer o ecossistema doméstico.
Definitivamente, é hora de trocar o espetáculo pelo vínculo. Nada substitui a relação de longo prazo entre artistas, galeristas, colecionadores e instituições. Relação é processo, não evento. Em vez de perseguir a expansão a qualquer custo, convém aprofundar o conteúdo, a curadoria e a reflexão. É crucial também encontrar formas de conexão com o público jovem, oferecendo portas de entrada menos intimidantes e iniciativas que permitam a formação de seu repertório.
Em paralelo, a transparência deve deixar de ser exceção. A opacidade crônica do mercado é uma fraqueza estrutural; sem números claros não se planeja, não se corrige rota, não se aprende. Além disso, modelos financeiros mais flexíveis –como comissões variáveis, acordos de parceria ou novas formas de monetização– podem devolver fôlego a artistas e galerias que não se encaixam no molde único da exclusividade integral e da margem fixa.
O que parece declínio pode ser o começo de algo melhor. Depois de décadas embalado pela ilusão do crescimento infinito, o mercado de arte está sendo forçado a olhar para dentro e reaprender a medir valor para além do preço. Em todo canto há artistas, curadores, colecionadores e público ávidos por conexão verdadeira. O desafio não é reviver o boom dos últimos anos, mas desenhar outro futuro mais sustentável e inteligente.
Nestes anos atuando no circuito da arte, vi modas, especulações, ascensões e quedas. Nunca vi, porém, tanta gente disposta a discutir com honestidade o que não está funcionando. Esse é o primeiro passo de qualquer cura. O segundo é agir –juntos. A terapia começou, e não precisamos de mais aplauso. Precisamos de mais compromisso.