“A Terra da Doce Eternidade”, novo livro de Harper Lee, é bom. Chegando perto de ser muito bom. Uma coletânea de oito contos que está acima da média com pão e manteiga servida pelas editoras.
O que distingue a apreciação da obra, no entanto, é seu caráter mercadológico —a conjunção de ser uma recolha de textos descartados, que se acreditavam perdidos, milagrosamente descobertos pelos representantes legais da autora e publicados sem a anuência dela, que morreu em 2016.
Na capa do livro, consta o nome de quem escreveu um dos maiores long-sellers de todos os tempos, “O Sol É Para Todos”, clássico contemporâneo que aborda racismo e direitos humanos e que, desde o seu aparecimento em 1960, vende como pão quente —cerca de 40 milhões de exemplares.
Não é a primeira vez que se descobre uma cápsula do tempo com as digitais de Harper Lee. Um inesperado romance foi publicado em 2015, fruto de outra descoberta milagrosa. “Vá, Coloque um Vigia” estava dormindo numa caixa de papelão na casa da escritora, no estado americano do Alabama.
Trata-se de um rascunho do que seria a obra que consagrou a autora, abandonado a pedido dos editores. Eram os mesmos que estimavam vender no máximo uns mil exemplares de “O Sol É Para Todos”.
Na época do lançamento, a notícia caiu como um petardo. Harper Lee tinha 89 anos e estava internada numa clínica para idosos. Muitos anos antes havia desistido de escrever, adotando um silêncio à Salinger.
Seu principal biógrafo, Charles Shields, disse que a escritora já não estava consciente de seus atos e havia sido vítima de aproveitadores. Segundo Shields, ela não queria ver o rascunho publicado.
Um típico barraco cultural ou debate ético cada vez mais comum —que poderíamos batizar de “fator Kafka”—, envolvendo a última vontade de escritores, o interesse de leitores ávidos por reencontrar o autor preferido e a responsabilidade de herdeiros e editores.
A discussão circundou “Em Agosto nos Vemos”, a novela outonal de Gabriel García Márquez, que teve um lançamento mundial dez anos após a morte do autor. Já sofrendo de demência, o Nobel colombiano havia optado por destruir o manuscrito. A considerar a resposta favorável de leitores e de parte da crítica, seu julgamento estava errado.
Exemplos de oportunismo rasteiro em torno de supostas obras-primas esquecidas em gavetas existem às pencas. Destaque para “O Original de Laura”, de Vladimir Nabokov, tido como um dos segredos mais bem guardados da literatura, tesouro enclausurado nos cofres de um banco suíço desde o fim da década de 1970. Enfim publicado em 2009, constatou-se a fraude. Não passavam de notas e rabiscos.
Quem agiu bem foi Fernando Sabino, que como bom mineiro era um sujeito desconfiado e precavido. Em seus últimos anos entregou-se a compor “a obra póstuma em vida”, retocando e dando forma definitiva a todos os seus inéditos.
Harper Lee não se dedicou a essa tarefa porque não tinha mais apetite para escrever, muito menos para rever velhos papéis amarelados. Com “O Sol É Para Todos”, tinha chegado aonde queria —e disse chega, satisfeita.
“A Terra da Doce Eternidade” é uma prova de sua dedicação e aprendizado enquanto buscava realizar-se como artista. O livro revela como Lee, tateando no escuro, procurando saídas, fez sozinha sua própria oficina de escrita criativa.
Elaborados uma década antes da publicação de “O Sol É Para Todos”, depois de a escritora deixar o Alabama e se mudar para Nova York, os contos mostram os mesmos cenários, personagens e dramas de sua obra única e irrepetível.
Um pouco do encanto futuro aparece nos relatos de aprendiz. O tom de voz implacável, engraçado e adolescente, que dá testemunho e condena o mundo adulto. Uma espécie de Holden Caulfield de saias, que não esconde a enorme ternura, mas tem cabelinho nas ventas.
Além de uma introdução assinada pela jornalista Casey Cep, encorpa o magro volume uma seção com oito ensaios. São reflexões sobre infância, família, amizade, vida intelectual e o sul dos Estados Unidos.
Sobressai um perfil de Truman Capote, com quem Harper Lee formou uma dupla maluca. Os dois, foram vizinhos quando crianças, e Lee se baseou nele para criar o personagem Dill Harris em “O Sol É Para Todos”. Ambos trabalharam juntos no romance de não ficção “A Sangue Frio”, embora a participação dela tenha ficado em segundo plano, meio escondida.
Invejoso do sucesso da amiga, Capote, ao beber além da conta, costumava dizer que era ele o verdadeiro autor de “O Sol É Para Todos”. Será que diria a mesma coisa sobre “A Terra da Doce Eternidade”?