“Ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado e da sociedade é o de evitar que ele aconteça, dando educação sexual, distribuindo contraceptivos e amparando a mulher que deseje ter o filho e esteja em circunstâncias adversas.” Assim começa a justificativa de voto do ministro do STF Luís Roberto Barroso, horas antes de se aposentar, favorável à ADPF 442, ação que tem o objetivo de descriminalizar o aborto no Brasil até a 12ª semana de gestação.
O óbvio precisa ser dito: descriminalizar o aborto não obriga nenhuma mulher a abortar. A decisão individual, em que pesam valores pessoais, familiares, religiosos, deve ser soberana —no âmbito individual. Mas é uma questão de saúde pública reconhecer que as mulheres abortam— mesmo as religiosas, mesmos as que se declaram contrárias ao aborto —e que colocam em risco a própria vida sem assistência do Estado.
Criminalizar o aborto não o torna menos frequente. Criminalizar o aborto coloca em risco a vida de meninas e mulheres pobres. Décadas de dados da Organização Mundial da Saúde mostram que onde o aborto é legal e seguro, a mortalidade associada é praticamente nula; onde é proibido, multiplicam-se os procedimentos clandestinos, as complicações e as mortes evitáveis.
Segundo dados do Center for Reproductive Rights, 77 países permitem a interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher, 12 a autorizam por motivos socioeconômicos e 21 a proíbem em todas as circunstâncias.
A tendência internacional tem sido de ampliação de direitos. A França se tornou, em 2024, o primeiro país a declarar explicitamente na Constituição o aborto como liberdade garantida. A União Europeia, em diferentes resoluções, tem defendido o acesso universal ao aborto seguro como parte dos direitos humanos das mulheres.
A América Latina tem ampliado garantias legais ao aborto, com o protagonismo de mobilizações feministas e de cortes constitucionais que interpretam o aborto como questão de justiça social e igualdade. A Colômbia descriminalizou até 24 semanas. A Argentina legalizou até 14. No México, a Suprema Corte declarou inconstitucional a criminalização.
Nos EUA, uma decisão da Suprema Corte em 2022 revogou o precedente que garantia o direito constitucional ao aborto, e 12 estados passaram a proibi-lo totalmente. Outros impuseram restrições tão severas que, na prática, impossibilitaram o acesso ao procedimento.
Na África, países como Benim e Serra Leoa vêm propondo reformas para descriminalizar o aborto, reconhecendo o impacto da proibição sobre a saúde materna.
Nos diferentes países, a descriminalização do aborto é defendida como questão de saúde pública e de direitos fundamentais, não de igreja, nem de polícia.
Já que, independentemente da legislação, as mulheres abortam, o papel do Estado deve ser o de oferecer acesso à saúde ou de punir, com cadeia ou morte, quem não tem dinheiro para pagar um procedimento ilegal e seguro?
Barroso encerra a justificativa de seu voto afirmando: “O papel do Estado não é o de escolher um lado e excluir o outro [entre quem é pessoalmente contrário ou favorável à prática do aborto], mas assegurar que cada um possa viver a sua própria convicção.”
Antes de Barroso, em 2023, Rosa Weber também votou favoravelmente à descriminalização. Tomara que os demais ministros conscientes do papel do Estado não esperem a aposentadoria para declararem seus votos.
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