O melhor do final da nova “Vale Tudo” não esteve no final de “Vale Tudo”, mas sim nos intervalos comerciais. O que a roteirista Manuela Dias, autora do remake, não conseguiu entregar em cena, ou, na verdade, destruiu em cena, os publicitários talvez até mais atuantes do que quem parece ter colaborado para estragar o maior clássico das novelas do país souberam chupar até o bagaço.
Os anúncios, abrilhantando o show de chatices a cada “break” do derradeiro episódio, tiveram uma magnífica Debora Bloch lavando os cabelos com um talvez nem tão magnífico xampu, porque afinal “só os danos de Odete Roitman é que são irreparáveis”. Houve ainda o bobo do Ivan, papel de Renato Góes, vendendo caminhonetes utilitárias de grande potência, úteis para enfrentar o trânsito da Barra da Tijuca. Fernanda Torres vendeu Havaianas na praia.
Na reta final, “Vale Tudo” entregou mais que a resposta a quem matou Odete Roitman. Demonstrou a enorme competência do time comercial da Globo de faturar até o último segundo. Estão de parabéns. A novela com mais “merchans” da história, que misturou sabão em pó com câncer, seguro de vida no lugar da narrativa da heroína, Coca-Cola como símbolo de festa, carros chineses como sinônimo de ascensão social e afins, virou um verdadeiro Super Bowl no capítulo final.
O resultado é paradoxal. Por um lado, a novela que seria a grandíssima atração dos 60 anos da TV Globo, pilar da cultura pop nacional, foi um trem descarrilado de tramas mal acabadas, personagens deformados e situações mais absurdas até para a terra do nunca dos folhetins. Foi apenas aquilo que novelas sempre foram, um produto para vender sabão em pó, a clássica “soap opera”, como os americanos já diziam com a junção de duas palavras que parecem estar em atrito. Por outro, parece ter despertado uma consciência no maior grupo de mídia do país de que novela é patrimônio nacional.
Não porque Manuela Dias e seu remake canhestro esteja à altura de Gilberto Braga, autor do original, mas sim pelo que revelam os comerciais. Numa jogada raríssima, uma das chamadas para promover a próxima novela das nove não mostrava cenas de “Três Graças”, trama de Aguinaldo Silva que será a sucessora deste doloroso remake, mas sim o próprio roteirista, aliás, um dos autores da “Vale Tudo” que entrou para a história.
O comercial, de uma elegância rara na TV atual, repassa uma a uma as grandíssimas vilãs que Silva criou. De Odete Roitman, ao lado dos colegas Braga e Leonor Bassères, passando por Perpétua, a inesquecível viúva de Joana Fomm em “Tieta”, até Nazaré Tedesco, papel de Renata Sorrah, em “Senhora do Destino” —ícones diferentes, mesmo autor, como diz o comercial.
Silva foi demitido anos atrás da Globo no terremoto que tirou de cena autores dos maiores clássicos da emissora. Sinal dos tempos, é claro, já que a Hollywood brasileira não pode ficar sobre os ombros de veteranos para o resto da vida. Parece, no entanto, que os mais novos não conseguem dar conta do recado, haja vista a sucessão de horrores no horário mais nobre da Globo —”Um Lugar ao Sol”, de Lícia Manzo, naufragou, “Mania de Você”, do mesmo autor de “Avenida Brasil”, João Emanuel Carneiro, também.
Nessa comédia de erros que foi a tentativa de refazer “Vale Tudo”, e isso é uma pena, a Globo parece ter entendido que valorizar os verdadeiros autores dos clássicos pode valer a pena. Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa que refez com grande habilidade “Pantanal” e “Renascer”, talvez seja uma exceção, mas fato é que parece haver uma crise em cena.
Estender o tapete vermelho a Aguinaldo Silva agora, ainda mais com um Globo Repórter sobre sua nova novela na sequência do último capítulo de “Vale Tudo”, demonstra que talvez as coisas possam tomar outro rumo. Os mais velhos são mais sábios, e talvez o país sinta falta da genialidade de tempos antes do fim do humor, da graça e da leveza, além da sordidez das vilãs que todos amamos e que ele soube escrever sempre tão bem.
Os comerciais, o sabão que a novela é feita para vender, parecem aqui ter muito mais propriedade narrativa do que aquilo que estão embalando. Não importa quem matou Odete Roitman, que, aliás, nem morreu —ressuscitou por mérito, já que só ela importava na novela—, mas sim um lampejo de consciência de que com novela não se pode brincar tanto. É paixão nacional, faz parte do Brasil, como as Havaianas de Fernanda Torres.