Quem matou Odete Roitman? Com certeza não foi um policial em uma operação desastrosa em uma comunidade periférica. Roitman não é negra, nem estava no lugar errado na hora errada. Roitman não era Pedro. João Pedro era uma criança negra, assassinado no quintal de casa com um tiro de fuzil pelas costas, numa cena sem chance de audiência no horário nobre da emissora.
No Brasil, a cultura das novelas é tão popular quanto a cultura da morte de jovens negros. Uma tradição silenciosa, cruel e enraizada. É como se fosse uma das reprises de Vale a Pena Ver de Novo —os mesmos personagens, os mesmos cenários e os mesmos finais. Enquanto milhões aguardam o desfecho de “Vale Tudo“, famílias negras continuam sem resposta para perguntas bem mais brutais: quem matou João Pedro? Quem matou Ágatha Félix? Quem matou Marcos Vinícius?
Poucas coisas são mais perigosas do que ser uma criança negra no Brasil. Entre 2021 e 2023, 15.101 crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no país, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Uma média estarrecedora de 13,5 mortes por dia.
E esses números também têm cor: 83,6% das vítimas eram negras, 92,4% eram meninos, em sua maioria com idades entre 15 e 19 anos, uma juventude que, em muitos casos, sequer tem a chance de chegar à vida adulta.
João Pedro Mattos Pinto tinha 14 anos quando foi morto dentro da casa do tio, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, durante uma operação conjunta das polícias Civil e Federal. Mais de 70 tiros atingiram a residência. Um deles, disparado por um policial da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), acertou o garoto pelas costas.
Como num roteiro pobre e sem surpresas, os três policiais civis envolvidos na morte de João Pedro foram absolvidos sumariamente. A Justiça aceitou a tese de legítima defesa, mesmo diante da absurda quantidade de tiros disparados durante a operação. Alegou-se que os vidros espelhados da casa impediam ver quem estava dentro, como quem diz: já que “não sei quem está ali”, melhor atirar 70 vezes até acertar alguém. Se a quantidade de disparos e a morte de uma criança não é o suficiente para condenar um assassino, o que mais seria?
Impunidades como essa mantém os dados de homicídios sempre atualizados. Segundo o Instituto Sou da Paz, apenas 36% dos homicídios são esclarecidos no país. Em estados como a Bahia, esse índice despenca para 13%. E essa estatística não é neutra: ela tem endereço, CEP e cor de pele. A impunidade, no Brasil, é um enredo antigo, com elenco fixo e desfecho previsível.
Enquanto a TV se prepara para revelar quem matou Odete Roitman, o Brasil segue sem coragem —ou vontade— de responder quem matou João Pedro. Porque, aqui, a bala tem alvo certo, e a Justiça, um ritmo mais lento que novelas prestes a serem canceladas.
Diferentemente de Roitman, João Pedro não é um personagem da ficção —por isso, o mistério da sua morte não tem solução, não por falta de pistas, mas por falta de vontade. No Brasil, quando o corpo é negro, morre-se em silêncio, e o culpado some nos créditos.
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