Teria já existido uma atriz tão adorável quanto Diane Keaton, um dos mais importantes rostos do cinema das décadas de 1970 e 1980? É improvável. Porque mesmo quando as performances da intérprete, morta neste sábado, aos 79, eram de personagens angustiadas, graves, densas, a ideia de peso nunca foi algo nem remotamente atribuível a ela.
Era uma mulher tão agradável de se olhar em cena, tão empática, tão identificável com todos nós que é de se duvidar que ela tenha despertado algum nível de antipatia em alguém. Mas a grandeza de Keaton ultrapassava essas qualidades mais imediatas. Ela era uma atriz extremamente talentosa. Sempre foi –e será– lembrada pelas excelentes colaborações com Woody Allen, com quem teve um relacionamento amoroso e uma fecunda parceria artística.
O ápice, é claro, se deu em “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa“, de 1977, em que ela interpretava uma variação dela própria, sob uma visão obviamente alleniana. Muito possivelmente foi a naturalidade com a qual interpretou Annie Hall —era o nome da protagonista e do filme, no original— que a tornou uma figura inesquecível no cinema. E imbatível na disputa do Oscar de 1978, quando tinha fortíssimas concorrentes, como Jane Fonda, por “Julia”, e Anne Bancroft e Shirley MacLaine, por “Momento de Decisão”.
“Lah-di dah”, ela dizia no filme, em momentos em que não sabia o que dizer, e ali ela não apenas expressava algo que nem ela própria tinha a exata noção do que era como também representava a todos nós, espectadores, que já havíamos passado por situações semelhantes em nossas vidas, quando devemos dizer algo, mas não sabemos o quê.
Keaton tinha essa característica que foi fundamental. Era uma pessoa com a qual todos nós podíamos nos identificar. Era uma mulher bela, mas nunca teve o tipo de beleza que a cimentasse em papéis glamorosos como algumas de suas contemporâneas, como Jane Fonda e Faye Dunaway. Era sempre uma mulher mais próxima da realidade, do dia a dia.
Foi ela a escolhida, por exemplo, para ser a protagonista de um dos principais filmes sobre a liberação feminina na década de 1970, “À Procura de Mr. Goodbar”, de Richard Brooks. Ali, ela interpretava uma professora primária que dava aulas para criancinhas pelas manhãs, mas que saía para bares pela noite atrás de homens. Por um motivo simples, exercer seu direito a ter prazer físico, sexual —o que, muitas outras mulheres da época achavam abominável. Mas ela ia, assim mesmo.
O filme, apesar de extremamente libertário em mostrar essa mulher adulta, dona de si, livre e aberta ao orgasmo, resguarda a ela um final violento, mortal. Uma punição à mulher que ousou ter prazer? Ou uma crítica a uma sociedade que pune mulheres que querem ter prazer? De qualquer forma, foi Diane Keaton que a interpretou, e da maneira mais livre possível –como ela sabia, como era sua especialidade.
Keaton era uma atriz de timing cômico admirável. Mas era igualmente uma enorme intérprete de dramas. Nos anos 1970, quando despontou, participou de “O Poderoso Chefão“, no papel da mulher de Al Pacino, com quem, aliás, também teve um relacionamento.
Esteve nos três longas da franquia de Francis Ford Coppola, e ainda que a personagem pouco aparecesse, tinha lá sua importância. Era no medo ou decepção do rosto dela, Kay, que havia um contraponto a muitas das atrocidades perpetradas pela família Corleone. De certa forma, ela representava o horror do próprio espectador diante do que via.
Mas foi mesmo Allen quem a elevou ao estrelato –antes do Oscar, já haviam feito vários filmes, inclusive com uma participação hilária em “A Última Noite de Boris Grushenko“, de 1975. E ainda colaborariam em “Interiores”, de 1978, e “Manhattan“, do ano seguinte.
Depois de se separarem, ela alçaria voos por conta própria. Nos anos 1980, fez trabalhos magníficos. Com Warren Beatty, em seu “Reds”, interpretou a ativista de esquerda Louise Bryant, que teve um romance com o jornalista John Reed durante a cobertura da Revolução Russa, em 1917.
Teria ainda performances robustas em filmes como “A Chama que Não se Apaga”, de Alan Parker, de 1982, no papel de uma mulher em crise conjugal. E também “Crimes do Coração”, de 1986, de Bruce Beresford, como uma das irmãs problemáticas, ao lado de Jessica Lange e Sissy Spacek.
Mas foram as comédias que mais a atraíam, o que ela fazia com os pés nas costas. Fosse o papel da mãe por acidente de “Presente de Grego”, de 1987, de Charles Shyer, ou ao lado de Bette Midler e Goldie Hawn em “O Clube das Desquitadas“, de 1996, de Hugh Wilson.
Em 1991, fez uma comédia muito reprisada na TV, “O Pai da Noiva”, de Charles Shyer, que estava muito aquém do seu potencial. E foi um pouco antes que Keaton exerceu um de seus talentos ainda hoje muito pouco conhecidos pelo grande público, a direção de filmes. Ela assina episódios de simplesmente uma das séries mais revolucionárias e cultuadas da TV —”Twin Peaks“, de 1990, criada por David Lynch. Infelizmente se dedicou poucas vezes a esse talento de cineasta.
Mas continuou brilhando como atriz. Interpretou a irmã de Meryl Streep em estágio avançado de câncer em “As Filhas de Marvin”, de Jarry Zaks, de 1996. E fez outro de seus trabalhos mais lembrados, ao lado de Jack Nicholson, em “Alguém Tem que Ceder”, de Nancy Meyers, de 2003. Recebeu, ali, sua quarta e derradeira indicação para o Oscar.
Depois, fez trabalhos menos interessantes, embora tenha aparecido numa inusitada participação como uma religiosa na série “The Young Pope“, de 2016, do italiano Paolo Sorrentino. Mas foi, acima de tudo, uma atriz que se firmou pelo frescor, pela leveza, nada dos excessos de atuação dos atores que gostam de ostentar recursos vindos das vísceras.
Diane Keaton era uma artista de primeira grandeza, mesmo sem querer provar a todo instante sua capacidade. Foi capaz de mostrar que a excelência artística pode vir da espontaneidade, ainda que calcada numa consciência do próprio trabalho. Uma atriz muito única e que, infelizmente, não parece ter deixado descendentes, em tempos em que parece ser sempre preciso às atrizes mostrar o seu potencial a ferro e fogo.
