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‘Coração sem Medo’ é o livro mais consistente de Itamar – 11/10/2025 – Ilustrada

Com epígrafe de Ricardo Aleixo —o mais impressionante nome da poesia contemporânea— e dividido em cinco partes, o novo romance “Coração sem Medo”, do baiano Itamar Vieira Junior, oferece 336 páginas de angústia, desespero e redenção.

No século 21 é proibido dar spoilers, mas devo avisar que, de tudo o que Itamar Vieira Junior escreveu até o momento, essa é a parte mais interessante e consistente de seu projeto literário.

É um livro que parece sugerir ser a forma trágica inventada pelos brancos o gênero no qual a vida negra cabe com exatidão.

Para os pessimistas, “Coração sem Medo” —parte final da trilogia da terra, composta ainda por “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”— é uma convocação às reparações históricas e uma catalogação dos resquícios institucionais da ditadura militar que, para o povo preto, não terminou em 1985 nem começou em 1964.

A protagonista é Rita Preta, que adquire esse sobrenome-adjetivo para diferenciá-la da Rita-branca, a proprietária da casa onde ela passa a morar. Fruto do êxodo rural, Rita Preta é bisneta de Donana, personagem-raiz de “Torto Arado”, e passa a maior parte do livro na busca de um filho desaparecido.

Em sua jornada de heroína, ela descende, empreende e transcende, construindo coletivamente suas memórias individuais; Rita Preta se transforma, sob nossos olhos, em uma Antígona que lixa nossos pés e faz nossas mãos.

Desse modo, Itamar arquiteta uma inesperada e estridente ode à força da família brasileira pobre, que não nasce do melhor modo, que não vive da melhor forma, mas cuja capacidade de resiliência sustenta a sociedade brasileira.

Ao longo da narrativa, o autor domina bem a arte de segurar quem o lê, mesmo que sucumba —bem mais vezes do que o desejável— a constantes intervenções pedagogizantes no texto, como se não confiasse na eficiência estética de sua fábula.

Nessas horas —são poucas, mas muito incômodas—, o didatismo do narrador arranha a imaginação do autor, e a renitente tentativa de domesticação do que é genuinamente selvagem em seus personagens profundamente humanos faz com que nos sintamos em uma parábola moralista.

Quando resiste a isso, entretanto, a obra cresce e é possível vislumbrar o que deu ao autor dois Jabutis, um prêmio LeYa e um prêmio Oceanos: a capacidade de criar atmosferas nas quais os valores colonialistas se desmancham no ar.

As páginas de “Coração sem Medo” comovem, entretêm e justificam o lugar de seu autor na lista dos mais vendidos. Ainda espero dele um narrador que não seja reverente ao mundo do leitor, mas tudo medido e tudo somado, é um livro que consegue combater a precariedade do mundo social com a fertilidade luminosa das fabulações individuais.

O romance responde com competência à frequente acusação, feita a todo autor cujos avós não vieram para esse país para dirigir fábricas, de que mudar as perspectivas antropológicas de uma tradição ficcional resulta obrigatoriamente na redução das ambições estéticas das literaturas daqueles que, até bem pouco tempo atrás, só tinham direito à literatura dos outros.

A discussão sobre forma e conteúdo, que nos últimos tempos tomou conta dos debates nas altas rodas literárias da Vila Madalena e nos cafés da Santa Cecília, encontrará na publicação de “Coração sem Medo” um novo capítulo.

Contudo, o eventual predomínio midiático de obras em que a sinopse parece importar mais que o trabalho de linguagem dos autores é um problema do mercado, não da literatura.

A confusão entre essas duas instâncias é sintoma de quem já perdeu a capacidade de compreender os fenômenos contemporâneos e que, por isso, busca inibir o nascimento de tudo aquilo que não pareça sintoma de velhas doenças.

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