Itamar Vieira Junior costuma se afastar da ideia de que “Torto Arado” já seja um livro clássico, mesmo diante do sucesso de público e da trajetória de prêmios que acumulou desde seu lançamento —venceu o Jabuti e foi finalista do Booker Prize, por exemplo. O escritor rejeita rótulos e pensa sua obra como parte de uma tradição viva e em diálogo com as lutas do povo brasileiro. “É um livro que ainda é uma criança, tem seis anos de publicação”, diz.
Agora ele encerra a trilogia que iniciou com “Torto Arado”, em 2019, e se desdobrou em “Salvar o Fogo“, de 2022, com “Coração sem Medo”. A obra, que chega às livrarias na semana que vem, desloca a série do sertão baiano para a capital Salvador e conta a história da protagonista Rita Preta. Vieira Junior diz não ter expectativas de repetir o sucesso da obra inaugural.
“Não tenho nenhuma pretensão. Cada livro é um livro. Quando pensamos na obra do Jorge Amado, cada um pode ter seu livro preferido, mas é inegável que ‘Capitães da Areia’ seja o mais popular. Quando a gente pensa no Gabriel García Márquez, é inegável que o que ‘Cem Anos de Solidão’ conseguiu nenhum outro conseguiu depois. Estou conformado, acho que, nesse sentido amadureci, não criei expectativas”, afirma.
“Coração sem Medo” traz a história mais contemporânea da trilogia e narra a saga de uma operadora de caixa de supermercado, mãe solo de três filhos, que tem a vida virada do avesso quando um deles —o mais velho, Cid— desaparece na comunidade onde a família vive, em Salvador.
A obra não só desloca o cenário do campo para a cidade, como passa de uma narrativa sobre uma comunidade abandonada pelo Estado, presente nos dois primeiros livros, para outra que enfrenta a sua opressão. Rita Preta é descendente de Donana, a avó de Bibiana e Belonísia em “Torto Arado”.
“Eles migram para a cidade nesse movimento de êxodo rural, mas descobrem que lá eles também não têm direito à dignidade, não têm direito à vida, à moradia, nem a habitar a cidade de uma maneira democrática”, afirma o autor.
Em “Coração sem Medo”, a protagonista vive um verdadeiro calvário na busca pelo filho perdido, vê a sua segurança em risco e tenta seguir mesmo diante das mais extremas violências. Quando questionado sobre a escolha de narrar mais uma história de uma mulher negra sob a perspectiva da dor profunda, o escritor avalia que há ainda muitas Ritas da vida real.
“Haverá um tempo em que a gente precisará narrar a vida por uma outra perspectiva, mas, para mim, é impossível fechar os olhos para isso”, diz o autor. “Quando narro a história de Rita, tenho a impressão de que estou narrando a história de muitas mulheres que ainda têm suas vidas inferiorizadas, subalternizadas, mas que, ainda assim, a exemplo dos antepassados, encontram força, coragem, propósitos e esperanças.”
Rita Preta, assim como em “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”, é mais uma protagonista negra no universo criado pelo escritor. “As três histórias têm como pano de fundo o drama do passado colonial. Se pensarmos que o mundo colonial foi projetado por homens, ao contar a história em uma perspectiva decolonial ou contracolonial, o foco muda, vai para os personagens que foram historicamente subalternizados”, diz o romancista.
“Achei justo que elas ocupassem esse espaço nessa trilogia. Até porque é uma alegoria sobre a terra. E a terra, na nossa língua, é uma palavra feminina. A terra é mãe, a terra é mulher”, afirma.
Quando Vieira Junior publicou “Torto Arado”, há seis anos, o contexto político era outro. O assassinato da vereadora Marielle Franco ainda estava fresco na memória. Pouco depois, viriam as mortes de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto Freitas, no Brasil. O movimento antirracista vivia então seu auge. Nos últimos anos, porém, esse espaço encolheu com o avanço da pauta “anti-woke“. O autor faz uma avaliação de como é publicar um livro com essa temática agora.
“Parece que mais uma vez estão querendo nos confinar em espaços de controle com o debate de identitarismo. O que está em disputa é o direito à memória, o direito à história. Quem pode ter, quem não pode ter. E as coisas estão se repetindo. Embora estejamos falando de uma faceta da história brasileira, do nosso passado escravista e da repercussão desses eventos no nosso cotidiano, no fundo, estamos nos confrontando com a experiência humana.”
Em entrevista recente, a tradutora Aurora Fornoni Bernardini disse que “Torto Arado” não é literatura, mas um produto de mercado que privilegia o conteúdo em vez da forma. Para Vieira Junior, ela representa um pequeno grupo de críticos tradicionais que não entende o sucesso de um “outsider”.
“Acusaram Lima Barreto da mesma coisa, de que ele não tinha um estilo próprio, que tinha uma linguagem muito direta. Carolina Maria de Jesus nem se fala o quanto ela é estigmatizada e hostilizada até hoje. Muita gente diz que ela não fez literatura.”
Itamar Vieira Junior diz preferir a definição do sociólogo e crítico literário Antonio Candido, que, em seu artigo “O Direito à Literatura”, diz “chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade”.
“Veja que coisa mais bela, não confinar a literatura numa caixa, mas torná-la uma expressão humana viva e que deve ser direito de todos. Então, eu fico com as ideias do professor Antonio Candido sobre literatura”, diz o autor.
“Um Defeito de Cor”, “Torto Arado” e “O Avesso da Pele“, de autores negros, foram escolhidos os três melhores romances do país no século 21 numa lista deste jornal.
“O Brasil vive neste momento um reencontro com suas origens, com sua diversidade, e isso contribui para uma lista como essa. Não acho que haja uma preferência pelo conteúdo antes da forma nestas obras. Se fosse apenas conteúdo, as pessoas ficariam com as matérias jornalísticas. Estes autores têm um projeto estético poderoso.”