O paulista Paulo Schiller faz suas traduções em meio a uma rotina atribulada de médico. Era pediatra, hoje atende em clínica como psicanalista. Usa as noites e os finais de semana para verter livros do húngaro ao português, línguas muito distantes. Nessas brechas, traduziu o mais novo Nobel de Literatura.
A versão brasileira de “Satántángó”, único livro de László Krasznahorkai editado por aqui, tem a assinatura dele. Schiller levou o prêmio de melhor tradução da Biblioteca Nacional pelo trabalho para a Companhia das Letras em 2022.
E nem foi o primeiro Nobel com o qual trabalhou. Do outro escritor premiado da Hungria, Imre Kertész, traduziu “Ausência de Destino” para a Carambaia e “Liquidação” e “A Língua Exilada” para a Companhia.
Em conversa com o repórter, lembra que foi o fundador da editora, seu amigo Luiz Schwarcz, que o incentivou a começar a traduzir, há 25 anos.
“Ele também é filho de pai húngaro, sabia que eu falava húngaro. E me propôs traduzir ‘O Legado de Eszter’, segundo livro do Sandor Márai para o português. E eu respondi que de jeito nenhum faria, porque eu não sabia ler bem em húngaro. E é verdade. É minha língua nativa, mas as letras e as pronúncias são muito diferentes.”
De todo jeito, ficou de pensar no caso. O primeiro livro de Márai no Brasil, “As Brasas”, teve enorme sucesso, mas foi traduzido indiretamente —do italiano, não do húngaro. Schwarcz deu a Schiller as versões de “O Legado de Eszter” nas duas línguas. O médico conta que leu a primeira frase nas duas e logo pensou: “O italiano está errado”. Então começou a traduzir.
Não é um trabalho nada simples. “É uma língua que não tem parentesco com nenhuma outra, a não ser uma relação distante com o finlandês e o estoniano. Ela se origina do norte da Sibéria. É um mundo completamente à parte.”
O idioma, por exemplo, não tem preposições nem tempo verbal para o futuro. E tem apenas um para se referir ao passado, que não se divide em pretérito perfeito e imperfeito.
“Além disso, é uma língua aglutinante”, explica o médico, que nasceu em São Paulo de pais húngaros que não falavam português. A palavra “üldögélt”, por exemplo, significa “ficar sentado à toa sem fazer nada”. “A precisão ao descrever uma situação é mais rica do que em português.”
“A gente tem vermelho e vermelhidão. Mas não temos, para o cinza, ‘cinzice’. No húngaro, tem. E qualquer substantivo vira verbo. A gente diz ‘tomar um sorvete’. Em húngaro, você diz ‘sorvetear’. Qualquer palavra pode ser flexionada num verbo.”
“Guimarães Rosa aprendeu húngaro e dizia que era a língua para falar com o demônio”, brinca o médico de 72 anos sobre a fama de difícil que ficou colada na língua. É um homem que se porta com o mesmo rigor que parece admirar no seu idioma de especialidade —e que acaba de lançar, ele mesmo, um longo ensaio pela Todavia, “A Paixão pela Mentira”.
Para falar a verdade, Schiller não vê tanta distância assim entre o escritor mineiro e o recém-eleito Nobel, já que chama “Satántángó” de uma espécie de “Grande Sertão: Veredas” da Hungria.
“É a narrativa de um vilarejo muito pobre, com pessoas do meio rural, o que restou de uma daquelas tentativas de coletivização do regime soviético. Mas é um lugar em que chove o tempo todo, ao contrário do sertão. O que lembra Guimarães Rosa não são neologismos, mas as frases muito, muito longas. E o autor diz que pensa a frase toda e só senta para escrever quando está pronta. É impressionante.”