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Peça ‘Velocidade’ desafia ritmo acelerado da era digital – 07/10/2025 – Mise-en-scène

A encenação de “Velocidade”, do grupo mineiro Quatroloscinco, é impulsionada pela proposição central do teatro como uma “máquina de desacelerar o tempo”, uma intervenção tática contra o regime temporal dominante da contemporaneidade. Em um mundo regido pela fragmentação e pelo impulso de “rolar tela”, o espetáculo se erige como um espaço de duração controlada que convida o público a uma presença radical, oferecendo uma janela de desaceleração intensiva.

Esta proposta não é meramente poética, mas surge como resposta expressiva ao momento histórico pós-pandêmico. A peça de Assis Benevenuto e Marcos Coletta se configura como uma “meditação tardia” sobre os anos de isolamento da pandemia e a frustração com o tempo hiperacelerado que se seguiu. Ao criticar a qualidade do tempo consumido digitalmente, a obra posiciona o teatro como refúgio necessário contra a fragmentação mental.

Formalmente, “Velocidade” adota uma arquitetura cênica duplamente inovadora. Concebendo-se como uma “peça-livro”, a obra se estrutura em sete partes análogas a capítulos, incorporando elementos como prefácio e posfácio. Esta escolha constitui um ato político contra a superficialidade da mídia contemporânea, opondo a linearidade estrutural do livro à não-linearidade fragmentada do scroll digital. Simultaneamente, ao se definir como “peça-sonho”, permite o uso de imagens não concatenadas que replicam a lógica onírica. A imersão inicia com um rito de passagem significativo: seis minutos de narração no escuro total com áudios de sonhos reais.

O elemento cênico mais distintivo reside no uso de bonecos de madeira que funcionam como avatares dos cinco atores. Estes duplos de 50 cm, rígidos e inanimados, materializam poderosamente a esquizofrenia identitária contemporânea, abstraindo o eu tal como o indivíduo acelerado se projeta em formas digitais. O contraste entre o corpo vivo do ator e seu boneco atinge o clímax na cena do “queda livre talk show”, onde os duplos encarnam o “inconsciente selvagem” dos performers, vocalizando verdades que a pressa cotidiana suprime.

“Velocidade” recusa-se a ser uma distração passiva. Seu desfecho transfere ao público a responsabilidade de levar a desaceleração e a reflexão para a vida além da sala de teatro, completando sua missão como máquina de transformação temporal.

Três perguntas para…

… Assis Benevenuto

A peça é descrita como uma “máquina de desacelerar o tempo”. Como se constrói, na prática cênica, essa duração controlada? É uma questão de ritmo, de repetição, ou da própria arquitetura da encenação?

A ideia de “Velocidade” como uma máquina de desacelerar o tempo é uma provocação poética que fazemos ao público. Esse conceito é citado por Vivian Abenshushan, escritora e editora mexicana, autora do ensaio “Notas Sobre os Doentes de Velocidade” – obra que dentre várias outras nos nutriu durante o processo de criação da nossa peça. Neste ensaio, a autora fala da literatura, e da arte em geral, como um possível mecanismo de desacelerar o tempo.

Entendemos essa provocação pela relação que se estabelece no teatro, onde o acontecimento da poíesis se dá num mesmo espaço-tempo entre agentes criadores e espectadores. É preciso estar ali, coletivamente, ainda que cada um com sua vida e história, não dá para ser depois. Bem, mas, para além dessa questão ontológica do teatro, quisemos proporcionar aos espectadores algumas percepções sobre a passagem do tempo e a velocidade das coisas e da vida.

Aí, sim, entram vários aspectos, como a cena inicial: a escuridão dilata nossas pupilas, o corpo torna-se mais atento, cria foco; o áudio com voz sonolenta também nos faz processar as informações noutro tempo. O espaço cênico tem poucos objetos, que vão sendo movidos pelo espaço ao longo da peça, e essa movimentação, que inclui também a dos atores, é realizada com cuidado, com limpeza, com calma, para que tudo aconteça e se transforme ali, na frente do público.

Os sete quadros do nosso livro-peça também criam essa noção de ritmo e repetição, ainda que cada capítulo tenha sua pulsação e duração distinta.

Assim, podemos pensar que a arquitetura da peça foi construída como um convite poético e prático para que estejamos (atores e público) ali, no tempo presente, construindo a poética de “Velocidade”, talvez desacelerando das tantas presenças virtuais que hoje nos integram. No entanto, não diria que é uma duração controlada, pois essa provocação poético-prática que fazemos só se elabora no outro, e cada pessoa tem um tipo de percepção.

Os seis minutos iniciais no escuro absoluto, com áudios de sonhos reais, soam como um “rito de passagem”. Qual era a intenção ao submeter o público a essa imersão sensorial e de privação visual logo no início?

É uma forma de convidar o público a entrar noutro nível de percepção. As pessoas (nós também) entram no teatro cheias de informações externas. Tem gente que deixa para desligar o celular só depois que a peça já começou. Enfim, são muitos os motivos que nos mantêm ligados às redes, né? Mas esse “rito de passagem”, tal como você descreveu, é uma provocação sinestésica mesmo. Como disse anteriormente, nossa pupila dilata, o corpo reage, fica mais alerta, qualquer mudança de luz é percebida com mais sensibilidade; tem pessoas que começam a abrir boca de sono quando escutam a minha voz no áudio – também bocejo várias vezes naquele áudio. É um áudio de um sonho real.

Durante o processo de criação nos debruçamos sobre os sonhos, sobre a nossa relação contemporânea com eles, sobre a história com os sonhos. Lemos a obra de Sidarta Ribeiro, entre outros cientistas que estudam esses aspectos. Em 2020, durante a pior parte da pandemia, eu fui passar um tempo no interior, fugindo da cidade, fui morar com meus pais na roça no interior de Minas, para onde eles voltaram a viver há alguns anos.

Uma noite eu sonhei com o meu avô paterno, recém-falecido. O sítio era dele, onde meu pai cresceu. Acordei de madrugada muito tocado pelo sonho, peguei o celular e gravei o sonho para que no café da manhã eu pudesse contar a meus pais, com a riqueza de detalhes que se eu não tivesse gravado, certamente perderia.

Durante a criação de “Velocidade”, fizemos vários exercícios sobre os sonhos. Um dia, eu reuni todos e mostrei o áudio. O que aconteceu é que ao escutarmos juntos, algo aconteceu ali. Fomos conduzidos para algum lugar coletivamente, talvez isso que você diz: passamos juntos por uma experiência. Teve quem ponderou sobre o tempo de duração, mas entendemos que justamente era esse risco que nos interessava. Não temos o controle se todas as pessoas experienciam da mesma forma o início da peça. Já tivemos relato de gente que disse que ficou muito tocada, emocionada e até incomodada, mas talvez seja sobre isso: a pessoa foi afetada.

No final, a “máquina de desacelerar” é bem-sucedida apenas se sua função continuar fora do teatro. Você acredita que uma experiência artística pode, de fato, alterar de forma duradoura a percepção temporal de uma pessoa?

Não sei se podemos pensar que uma obra de arte seja bem-sucedida nesse sentido, porque o que acontece com o público não temos muito a dimensão, e a obra acontece é em contato com ele. O que eu digo ao final, nos agradecimentos, que “a contracapa do livro que fizemos juntos ainda será escrita, por cada um de vocês, em suas memórias e sonhos, a partir do momento em que saírem do teatro”, acho que tem a ver com isso de uma continuidade da experiência que cada um irá desenvolver, levar, esquecer, sei lá, mas é algo que a gente não domina.

A ideia da peça como uma máquina de desacelerar o tempo funciona como provocação poética, menos como um uso utilitarista da arte, como um objeto funcional. Acredito que uma experiência artística pode, sim, nos transformar de alguma forma, expandir, ou até mesmo nos endurecer, ou seja, nos afetar. Mas sobre a durabilidade dessa experiência e suas consequências, não saberia delimitar.

CCBB – rua Álvares Penteado, 112, Centro Histórico. Qui. e sex., 19h. Sáb. e dom., 17h. Até 12/10. Duração: 100 minutos. A partir de R$ 15 (meia-entrada) em bb.com.br/cultura e na bilheteria do CCBB

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