O chão de madeira estala com o caminhar num ambiente intimista de luz baixa onde só se ouvem murmúrios. Neste local de silêncio e atmosfera solene, dezenas de pessoas observam bem de perto pequenos quadros, menores do que cartões postais —são ilustrações de mendigos e anônimos das ruas, cenas de família e de passagens bíblicas, autorretratos e paisagens.
Trata-se de um conjunto de 69 gravuras de Rembrandt, o grande artista holandês, em exibição até 8 de novembro no Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro. A mostra —que depois viaja para a Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, e o Palácio Anchieta, em Vitória—, é uma rara chance de ver um bloco tão expressivo da obra do pintor e gravador, considerando que ele produziu pouco mais de 300 gravuras. Não há previsão de que a exposição chegue a São Paulo.
“As gravuras são muito velhas, mas também muito modernas e contemporâneas”, afirma Luca Baroni, organizador da exposição e diretor da Rede dos Museus da Região Marche Nord, na Itália, que administra o conjunto de obras, todas parte de uma mesma coleção privada. Isto porque, diz Baroni, ao desenhar pessoas das ruas de Amsterdã, situações de seu cotidiano, sua mãe ou retratar a si mesmo, o artista “consegue criar uma conexão com o público, que pode ver o mundo pelos olhos de Rembrandt”.
Produzidas entre 1629 e 1665, período que coincidiu com as décadas em que Rembrandt van Rijn morou em Amsterdã —então uma cidade conectada ao mundo devido ao comércio e exploração marítimas realizadas a partir da costa holandesa—, as gravuras são um atestado da maestria do artista com a técnica do “chiaroscuro”, o uso da luz e das sombras que confere às obras forte contraste, no aspecto visual, e muita dramaticidade, no plano simbólico, assim como Caravaggio fez na sua pintura.
Exemplo disso é “Estudante à Mesa à Luz de Velas”, exposta na segunda sala, uma água-forte que, se vista de longe, parece apenas uma mancha preta no papel, mas que revela o sujeito do título quando o espectador chega perto. Água-forte é um método no qual o artista risca o desenho numa placa de cobre com uma ponta afiada e depois mergulha a chapa num ácido, que penetra nos sulcos. Molhada, a matriz é então colada sobre o papel para formar a ilustração.
“O paradoxo da gravura é que o artista não cria a obra de arte final —ele trabalha na chapa, não no papel. Quando você pinta, você adiciona elementos e, assim, vê o trabalho à medida em que é feito. Já, ao fazer uma gravura, você precisa imaginá-la primeiro, porque não vê o resultado final [de imediato]. Você desenha e é o ácido que faz o trabalho por você”, afirma Baroni.
Baroni ressalta que Rembrandt ficou famoso como gravurista antes mesmo de como pintor —seus óleos mais conhecidos, “A Lição de Anatomia do Doutor Tulp”, e “Ronda Norturna”— foram executados depois que ele já vendia aos colecionadores centenas de impressões de suas gravuras para se manter. As pinturas alavancaram seu nome ainda mais. “Ele fez muito mais dinheiro com as gravuras. Porque, mesmo que fossem mais baratas que as pinturas, é possível fazer até mil impressões de uma.”
Dividida em duas grandes salas, a exposição traz algumas das mais importantes gravuras do artista, como “O Jogador de Golfe”, uma das primeiras representações do assunto na história da arte, e “Autorretrato com Saskia”, datada de 1636. O ano marcou o casamento de Rembrandt com Saskia van Uylenburgh, de uma família da aristocracia holandesa e que tinha um primo comprador e vendedor de arte responsável por influenciar a carreira de Rembrandt.
Em “Autorretrato com Saskia”, ressalta o organizador da mostra, Rembrandt se desenhou com uma roupa pomposa e um belo chapéu, vestuário que sinalizava seu status social de prestígio adquirido após o casamento. Ilustrar sua mulher junto era uma forma de dar relevância para ela e celebrar uma união feliz num momento em que ele se estabelecia como o principal artista de Amsterdã —Rembrandt pintava retratos da burguesia sob encomenda.
A maioria das gravuras tem o tamanho entre um selo e um cartão postal porque as placas de cobres grandes eram mais caras e, logicamente, com uma área maior a ser ilustrada, davam mais trabalho ao artista. Era mais rápido —e economicamente vantajoso para Rembrandt— produzir obras em menor escala para suprir a demanda de seu aquecido mercado.
Ainda assim, a exposição traz algumas gravuras de grandes dimensões, a exemplo da representação bíblica de “A Morte da Virgem”, em que vemos a mãe de Jesus cercada por apóstolos tristes no fim da sua vida. A imagem é uma nova versão de uma gravura de mesmo tema feita pelo alemão Martin Schongauer —considerado primeiro grande gravador, que trabalhou no final do século 15—, e que Rembrandt mantinha em sua coleção de obras de arte.
Nesta e em outras obras, chama a atenção a riqueza de detalhes. É possível ver com clareza as linhas das mãos dos personagens, o drapeado dos tecidos e as expressões desoladas de quem está ao redor de Maria, já com os olhos fechados no seu leito de morte. “Só Rembrandt era capaz de fazer isso, porque tinha domínio técnico”, afirma Baroni.