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‘Agradeço a Deus que minha mãe não está viva para ver o filho ser assassinado’, diz jornalista da Faixa de Gaza – 06/10/2025 – Mundo

Era sexta-feira, e Ghada al-Alkurd lembra de ter saído pela manhã com suas irmãs e amigos para tomar um café em um lugar próximo ao seu apartamento, no oeste da Cidade de Gaza, perto da fronteira do território palestino. Naquele 6 de outubro de 2023, a jornalista pediu um prato com arroz, pão e carne. Junto de seus colegas, combinou de sair novamente no dia seguinte para comerem peixe.

Ghada, 39, voltara para Gaza havia dois meses, depois de passar quatro anos em Istambul para concluir seu mestrado em comunicação. Por isso, conta que ainda estava surpresa com as novidades, “com as luzes, os prédios de arquitetura moderna e os cafés” que ainda não existiam quando saíra, quatro anos antes. “À noite, meu amigo chegou e saímos no carro dele para comprar alguma sobremesa e ver a noite na cidade.”

“Eu fui dormir, e foi a última noite em que senti aquela tranquilidade que nunca mais vivi.” Desde que acordou, no 7 de Outubro, Ghada diz ter começado a viver um conflito que seria pior que os anteriores. “Ver o que estava acontecendo naquele dia era como um sinal para mim de que esta seria a guerra mais horrível que jamais testemunharemos.”

A jornalista afirma que “esperava que fosse durar uns seis meses, não dois anos de constantes ataques e assassinatos“. As consequências, segundo Ghada, foram muito além do que qualquer um jamais imaginara. “Eu perdi 12 quilos. Não sinto minhas feridas, meus músculos”, conta. “Me mudo constantemente de um lugar para outro e estou sempre tentando me adaptar. Não tenho a possibilidade de ficar doente, tenho que cuidar de mim mesma, das minhas filhas, do meu trabalho”.

Além disso, conta a jornalista, toda a sociedade palestina mudou. “Todos buscam seus próprios interesses para seu próprio benefício, e isso não era assim antes, éramos solidários uns com os outros. A guerra afeta nosso comportamento, nossa atitude como seres humanos.”

Desde quando se formou na Universidade de Gaza, Ghada trabalha como repórter para diversas agências e veículos internacionais, função que se intensificou após o início da guerra. “Sinto muita pressão na cabeça, mas não tenho tempo para parar. O trabalho é a única coisa que me mantém viva.”

Durante a entrevista por videoconferência à Folha, a jornalista interrompeu sua fala repetidas vezes para tossir. “Acho que estou com algum tipo de febre agora mesmo, temperatura alta, mas ainda assim não quero que essas coisas me dominem, não posso ficar doente“, ela afirma.

Ghada tem duas filhas, de 11 e 13 anos. Fatima e Mira estão fora da escola há dois anos, como todas as crianças do território. A princípio, os edifícios dos colégios passaram a abrigar pessoas deslocadas pelo conflito. Durante a guerra, no entanto, o Exército de Israel atacou também essas estruturas, com a afirmação de que escondiam membros do grupo terrorista Hamas.

“Minhas filhas precisam continuar seu processo educacional e eu não sei por onde começar, elas estão começando a não saber escrever muitas coisas, e eu não consigo ensiná-las sozinha”, relata. “Os jovens estão sem educação, eles estão brincando, perseguindo caminhões por comida, por água ou qualquer coisa.”

Além da falta de acesso à educação, a jornalista perdeu o pai devido à indisponibilidade de recursos de saúde. “Ele teve um derrame cerebral, precisava de um tratamento especial, e não conseguíamos mais encontrar a medicação para ele. Então, um dia, acordamos de manhã e olhamos para ele. Ele não estava se movendo, e percebemos que ele havia falecido.”

Um irmão de Ghada morreu durante um dos ataques de Israel. “Nem tive tempo de chorar. Em Gaza não há tempo para o luto, só seguimos tentando sobreviver”, relata, ao contar que outro irmão morreu durante a Operação Chumbo Grosso, orquestrada por Israel em 2008 —mais de 1.300 palestinos e 13 israelenses morreram à época.

“Sempre agradeço ao meu Deus que minha mãe não tenha testemunhado o assassinato dos meus irmãos e até mesmo do marido dela”, diz Ghada ao relembrar sua morte, em 2007, em decorrência de um câncer. “Ela faleceu antes de tudo isso. Foi difícil para mim, mas se ela estivesse viva neste momento, eu não acho que ela aguentaria. Ela não teria a capacidade de sobreviver.”

Em meio ao vaivém nos planos de cessar-fogo e com esperança de que a guerra acabe, Ghada conta lembrar constantemente da família. “Nós morávamos dentro de uma área verde cheia de laranjeiras e oliveiras, na casa da nossa família, que foi destruída nesta guerra. Eu me lembro do casamento do meu irmão, que fizemos em casa. Todos estavam felizes e estávamos todos juntos.”

Ghada se emociona ao contar que sempre se lembra desses dias e quer que eles voltem. “Mas, infelizmente, a maioria dos nossos primos e parentes está morrendo ou foi morta nesta guerra, e até nossa casa foi destruída“, ela relata. “Não sei se conseguirei voltar para o meu bairro. E acredite, a razão pela qual voltei para Gaza é porque queria morar nesse bairro, porque não me sentia confortável em nenhum lugar neste mundo além do meu lugar.”

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