“O Mágico di Ó – O Clássico em Forma de Cordel” é um feito de transposição cultural que fincou a clássica jornada de Dorothy no coração do Nordeste brasileiro. Ao usar o cordel como espinha dorsal estética, o musical elevou a história universal a uma vibrante alegoria sobre a resiliência e a cultura de fé do povo nordestino, tornando a migração e a busca por um lugar ao sol temas centrais.
A genialidade lírica e textual é do jovem Vitor Rocha, que se consolida como um dos grandes talentos da dramaturgia nacional. Rocha, notável por obras como “Donatello”, “João” e “Cargas D’Água” – trabalho que ganhou montagens em Londres e Nova York –, demonstra um talento especial ao tecer versos com uma linha melódica peculiar, transformando sua prosódia mineira na cadência exata do cordel. Suas letras são impregnadas de um lirismo esperançoso, onde a magia dá lugar à crença. A canção “Alumia, Clareia” ilustra isso perfeitamente: os pirilampos guiam a heroína, e a jornada é transformada em uma busca espiritual, reafirmando que “quem a fé tem por perto, nunca teme as lonjuras”. A peça ensina que a fé “multiplica, subtrai os obstáculos e divide a recompensa”, um eco da profunda filosofia de vida do Nordeste.
Para que essa transposição soasse autêntica, a identidade sonora foi crucial, e é aqui que entra o rigor técnico de Marco França, diretor musical e co-compositor. França não apenas integrou a musicalidade essencialmente brasileira aos versos de Rocha, mas também assumiu um papel vital com o treinamento de prosódia. Esse detalhe técnico, essencial para sotaques regionais complexos, garantiu que a fala e a expressividade vocal, presente até no título, “di Ó”, fossem executadas com o respeito e a autenticidade necessários, blindando a obra contra qualquer risco de caricatura. A excelência da regionalização não está só nos instrumentos, mas na melodia rigorosa da própria língua.
A força da narrativa de cordel é impulsionada pela energia e versatilidade de um elenco talentoso. A protagonista, Luiza Porto, entrega uma Doroteia cheia de garra e ternura, carregando o sonho da chuva e do arco-íris para o Cariri. Ao seu lado, o próprio autor, Vitor Rocha, é o carismático Osvaldo, o cordelista que conduz a trama com a oralidade hipnótica do sertão. O trio de companheiros de Doroteia também brilha: Daniel Haidar (o Mamulengo), Dom Capelari (o Cabra-de-Lata) e Thiago Sak (o Leão) oferecem atuações repletas de humor e emoção genuína, capturando a essência dos personagens clássicos com uma roupagem profundamente nordestina. A estes se somam Diego Rodda (Tio/Bruxa Má) e Renata Versolato (Tia/Bruxa Boa), que completam o grupo com a destreza de quem sabe equilibrar a dramaticidade do teatro musical com a leveza do imaginário popular.
Estreado em 2019, num cenário teatral de escassez, “O Mágico di Ó” provou sua força, realizando temporadas de sucesso e sendo aclamado pela crítica. A Direção de Ivan Parente e Daniela Stirbulov e a direção de arte de Juliana Porto e Silvia Ferraz, que traduziu a estética da xilogravura, garantiram que o espetáculo fosse visualmente coeso com sua proposta. O sucesso imediato e a consequente transposição para o cinema confirmam que a peça se estabeleceu como um modelo de como o teatro musical pode honrar a cultura popular brasileira com profundidade artística e excelência técnica, celebrando a coragem e a universalidade da mensagem nordestina.
Três perguntas para…
… Vítor Rocha
Qual foi o momento decisivo em que você percebeu que o universo de Oz poderia, e deveria, ser contado através da lente da Literatura de Cordel?
O momento decisivo para a criação da peça não foi um estalo, mas um processo de insight ao refletir sobre a limitação das histórias clássicas, especificamente o lema de Dorothy em “O Mágico de Oz”: “não há lugar como o nosso lar”.
Essa frase me inquietou, pois, em um país continental como o Brasil, o lar não é sinônimo de felicidade para todos, podendo ser um lugar de privação. A pergunta central veio daí: e se Dorothy estivesse em um lugar onde o arco-íris não existe? Isso me levou à imagem do sertão, uma terra de sol e seca, mas de cultura riquíssima e resistente.
Essa mudança de cenário abriu todas as portas. Os personagens foram ressignificados. O Espantalho, buscando autonomia em um lugar de luta, virou o Mamulengo (marionete de pano). O Homem de Lata, ressecado pelo sol em busca de emoções, se tornou o Cabra de Lata.
Outro ponto de incômodo era o charlatanismo do mágico original. Eu queria um poder real, mas diferente. No sertão, a capacidade de criar mundos é do cordelista, do poeta. O mágico-cordelista da peça não altera a realidade, mas muda a forma como enxergamos nossa própria história, dando-nos as lentes para reinterpretar a jornada.
Sua ascensão no teatro musical tem sido meteórica. Você sente que há uma “assinatura” ou um tema recorrente — como a jornada e a adversidade — que une suas obras?
Tenho 7 ou 8 espetáculos autorais criados em cerca de 6 ou 7 anos em São Paulo. Inicialmente, minha assinatura autoral vinha da rima e da cultura brasileira regional (viola caipira, cantigas de roda, cordel). Mesmo ao abordar temas contemporâneos e abrir mão da rima, o público continua reconhecendo minha marca registrada, que identifico em dois elementos essenciais: a jornada e o lúdico. A jornada, seja interna ou externa, é crucial em meus trabalhos.
Em histórias como a da Doroteia, há a aventura externa e o crescimento interno, mas mesmo em dramas como “Donatello” — sobre o Alzheimer do avô —, construo uma jornada interna que o público sente como aventura, pois o cotidiano no palco deve ser extraordinário. O lúdico é uma constante; tentei outros caminhos, mas sempre retorno a essa abordagem. Não me considero autor de fantasia, mas sou fascinado pelo realismo fantástico e pela licença poética, e esses elementos sempre dialogam nas minhas obras.
“O Mágico di Ó” estreou em um período de escassez de patrocínios, mas alcançou sucesso independente. Qual é a principal lição que você tira sobre a resiliência da produção cultural no Brasil?
A principal lição que aprendi sobre resiliência é a importância de dar o tempo que as coisas precisam, algo difícil para um produtor ou artista no Brasil. É crucial persistir, especialmente com um projeto original.
Embora “O Mágico de Oz” original seja mundialmente conhecido e ajude a encurtar o caminho, o meu projeto é uma obra original e isso, no nosso contexto cultural, leva tempo. Mesmo com sucesso inicial de crítica e público, o crescimento é um passo de formiguinha. A resiliência está em se manter em cartaz, provando o valor da originalidade e que ela vale o risco.
Tive o “azar” de criar obras autorais em uma época em que o mercado prefere remakes e remontagens, o que gera desconfiança em relação ao novo. Mas isso também é a oportunidade de ser o diferencial. A lição foi apostar naquilo que era honesto e importante para mim, apesar das pressões do mercado.
O que manteve e mantém “O Mágico di Ó” em cartaz é o público. É muito difícil ter uma vida longa no teatro sem pensar em quem assiste. O fato de o espetáculo estar há sete anos em cartaz e raramente não esgotar ingressos é um sinal importante de que o público valoriza e busca esse tipo de arte.
Sesc Santana – Av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana, região norte. Até 5/10. Domingo, 12h. Duração: 70 minutos. A partir de R$ 12 (credencial plena) em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades