Desde que lançou sua candidatura à Presidência de Portugal, em maio deste ano, o almirante Henrique Gouveia e Melo, 64, lidera as principais pesquisas de intenção de voto para as eleições de janeiro de 2026. Ele se tornou uma personalidade pública durante a pandemia, quando comandou o bem-sucedido processo de vacinação no país. O almirante, que se apresenta como um candidato independente, sem partido, e se define como um “socialista democrático”, desembarca no Brasil neste sábado (4) para fazer campanha junto aos imigrantes portugueses que vivem em São Paulo e no Rio de Janeiro.
No semipresidencialismo português, o presidente é responsável, entre outras coisas, pela política externa., mas o chefe de governo é o primeiro-ministro. Em entrevista à Folha, Gouveia e Melo relembra sua ligação com o Brasil, mais especificamente com São Paulo, onde viveu durante quatro anos, na adolescência, e estudou no colégio Caetano de Campos. Em relação à recém-aprovada lei portuguesa que tenta limitar a entrada de estrangeiros considerados menos qualificados, afirma que “a economia é que decide depois, na prática, quem são as pessoas de que nós precisamos”.
Sobre o cenário global, diz que Putin está “atolado na Ucrânia” e não tem forças para invadir a Europa. E enxerga Brasil, Portugal e Angola como os três vértices de uma “nova economia transatlântica”.
O sr. morou no Brasil como imigrante na década de 1970. Como vê a atual presença de brasileiros em Portugal, uma comunidade estimada em cerca de 700 mil pessoas?
Se eu for eleito, não me esquecerei de que o Brasil foi porto de abrigo de uma população gigantesca portuguesa, que viu uma terra de oportunidade e foi recebida sempre de braços abertos. Eu próprio, num determinado período da vida dos meus pais, fui imigrante no Brasil e fui recebido de braços abertos. No colégio Caetano de Campos, em São Paulo, onde estudei, havia gente de diferentes origens. Meu melhor amigo era coreano. Nós temos mesmo que nos misturar, que criar uma nova sociedade. Para mim, o mundo, ao longo dos séculos, evoluiu na direção de uma sociedade multicultural. O Brasil, aliás, é um exemplo disso.
Na última terça (30), a Assembleia da República aprovou uma lei que dificulta a entrada de brasileiros, principalmente os que não se enquadram no critério de “altamente qualificados”. A indústria do turismo, essencial para Portugal, contrata muitos brasileiros para trabalhar em hotéis e restaurantes. O que o sr. acha dessa lei?
Ambicionamos atrair gente mais qualificada para poder incorporar talento e tecnologia, o que nos levaria a subir de valor na cadeia das economias internacionais. Isso é um desejo, mas a economia é que decide depois, na prática, quem são as pessoas de que nós precisamos. Se a economia, nesta fase, precisa de imigrantes menos qualificados, são esses que virão.
A União Europeia vive um desafio de aumentar os gastos em defesa depois da invasão russa da Ucrânia. Como militar que já ocupou cargos de liderança na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), como enxerga este contexto?
Putin não vai conseguir invadir a Europa. Está atolado na Ucrânia e mesmo assim terá dificuldades para não sofrer um golpe interno e sobreviver ao final dessa aventura toda. Se Putin não sobreviver, pode acontecer à Federação Russa o pior dos pesadelos: deixar de ser uma Federação e passar a ser só a Rússia, com outros países [repúblicas autônomas] saindo.
Concorda que a invasão da Ucrânia mudou o jogo na Europa?
Essa é uma visão redutora. Tivemos antes disso a saída, em termos militares, dos Estados Unidos da Europa, um processo que começou a acontecer na administração Obama. A administração Trump só está a tentar finalizar o processo. O que os Estados Unidos estão a dizer à Europa é: “Nós fazemos um esforço tremendo, na nossa economia, para criar um sistema de defesa suficientemente alargado para defender a nós e a vocês, e os senhores são países ricos e não querem fazer esse esforço. Há aqui qualquer coisa que está mal”. Com a administração Trump, que é muito mais transacional, o negócio foi posto em cima da mesa de uma forma muito mais clara e evidente.
O que o sr. chama de “transacional”?
Transacional é uma administração que liga menos aos aspectos históricos e ideológicos e mais aos interesses imediatos. Mas o trumpismo não vai triunfar. É uma ideia defasada no tempo. O trumpismo tem um modelo econômico mercantilista, e esse modelo foi abandonado há mais de um século pelas grandes potências, porque não funciona. É um modelo que vai colapsar a América. Não é “America first”, é “America last”. Os EUA estão numa encruzilhada, mas os EUA não são a administração Trump, tem lá muita gente inteligente, tem think tanks. Estão numa deriva, que faz parte dos processos dos países, fazem uma curva e depois voltam, não ao lugar anterior, mas a uma posição muito parecida com a anterior. Os EUA, para serem grandes, precisam da Europa, precisam da África e da América do Sul.
Poderia explicar melhor?
O Ocidente, a cultura ocidental, deve ter um grande motor econômico para conseguir sobreviver ao motor do Índico e do Pacífico. Isso vai nos obrigar a fazer uma ligação à volta do Atlântico todo, não só do Atlântico Norte, envolvendo a América do Sul e envolvendo a África. Por quê? A economia são pessoas. Todos os continentes estão a entrar em inverno demográfico, menos um: a África, que nos próximos 15 anos vai duplicar a população. Vamos falar agora da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP). Há três vértices que estão posicionados de forma estratégica. Um vértice é Portugal, o outro é o Brasil e o outro é Angola. Se soubermos operar esses três vértices, teremos todas as vantagens da Europa, todas as vantagens do mercado sul-americano e todas as vantagens do mercado africano. Seremos um operador importante nesta nova economia transatlântica. E por que eu acho que esta economia vai ter que acontecer? Porque é a única forma de os EUA manterem uma superioridade sobre a economia do Pacífico e do Índico.
Hoje quem tem presença forte na África não são os EUA, e sim a China.
Eu pertenço a uma sociedade que foi colonizadora. E o modelo colonial é muito simples. Uma pequena elite controla uma população e extrai de um território produtos a preço baixo para uma metrópole. Pense como é que a China está em África. E veja lá se o modelo é diferente daquele que eu acabei agora mesmo de descrever. A China tem um modelo colonial em relação à África, assim como o Reino Unido e Portugal tinham no passado. O que nós temos que fazer em África é verdadeiramente um plano Marshall, para desenvolver o continente. Vamos investir nesse mercado e depois vamos nos beneficiar desse mercado.
O senhor nasceu na África, em Moçambique. Poderia falar um pouco mais de suas origens?
Minha família estava em África há pelo menos 300 anos. Tive um tio que foi governador-geral e depois secretário-geral de Moçambique, que equivalia a uma espécie de primeiro-ministro. Meu bisavô foi governador de províncias em Angola. Com a Revolução de 1974, nosso mundo mudou de um dia para o outro e retornamos a Portugal. Meu pai era um socialista, mas odiava o comunismo, porque odiava as ditaduras. Quando chegou a Portugal, começou a ver o regime derivar perigosamente para uma ditadura de esquerda. Fomos então para o Brasil. Meu pai foi trabalhar como advogado. Minha mãe foi educada na Rodésia [atual Zimbábue], portanto falava inglês como se fosse de nascença. Encontrou emprego no Brasil como secretária numa multinacional, porque na altura não se falava muito inglês no Brasil. Passamos quatro anos em São Paulo. Voltamos porque meu pai tinha saudade de Portugal e porque eu queria ser militar. Meu irmão ficou no Brasil, casou-se com uma senhora brasileira, teve dois filhos e até hoje moram em São Paulo.
Raio-X | Henrique Gouveia e Melo, 64
Nascido em Moçambique em 21 de novembro de 1960, de uma família portuguesa com raízes coloniais na África, voltou a Portugal após a Revolução dos Cravos, em 1974, e depois emigrou para o Brasil. Viveu em São Paulo por quatro anos e concluiu o ciclo escolar até retornar a Lisboa, onde ingressou na Escola Naval. Foi chefe do Estado-Maior da Armada e, em 2021, ganhou notoriedade em Portugal por coordenar a força-tarefa de vacinação contra a Covid.