Após dois anos devastadores de guerra, o grupo terrorista Hamas enfrenta uma decisão difícil: aceitar um cessar-fogo em Gaza significa se render militarmente, caso dê aval o plano dos Estados Unidos que exige seu desarmamento e a renúncia a qualquer papel futuro no território palestino.
Uma pessoa familiarizada com a lógica do Hamas descreveu o momento como existencial para o grupo cuja força ao longo de décadas derivou da recusa em ceder.
Os líderes do Hamas afirmaram que estão estudando o plano anunciado por Donald Trump na segunda-feira (29), para encerrar a guerra de Israel contra o grupo em Gaza. A proposta tem o apoio do Estado judeu e de nações árabes.
A pressão sobre o Hamas —que desencadeou o conflito com os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023 contra Israel— cresce por todos os lados. Caso rejeite o plano, as consequências são evidentes.
Em Gaza, Israel continuaria sua ofensiva contra o grupo. A maior parte do território foi reduzida a escombros, mais de 66 mil palestinos foram mortos, segundo autoridades locais, e especialistas da ONU declararam que há fome em partes do norte da faixa. Mais de 90% da população foi deslocada várias vezes, com muitos vivendo em tendas.
Em Gaza, muitos culpam o Hamas por ter provocado a força destrutiva da máquina militar israelense. Os líderes do grupo também sofrem pressão de Estados árabes e muçulmanos —inclusive dos mais próximos, como Qatar e Turquia— para aceitar a proposta de Trump de cessar-fogo e de um plano de reconstrução pós-guerra para Gaza.
Exaustos, traumatizados pela guerra e pelas perdas, os palestinos de Gaza desejam desesperadamente o fim dos combates e a chance de reconstruir suas vidas. Muitos pediram ao Hamas nas redes sociais que aceite o plano de Trump.
“A situação humanitária é desastrosa, e sabemos que Trump deu luz verde a Israel para continuar se o plano for rejeitado”, disse Mustafa Ibrahim, analista político em Gaza. “As pessoas esperam que o Hamas aceite, mesmo que seja um mau acordo.”
A poetisa de Gaza Nima Hasan publicou nas redes sociais que o Hamas deveria aceitar desta vez. “Sabe que sua aventura chegou ao fim. As mortes continuam em Gaza, e o bombardeio não parou um só momento. Aceitar agora significa menos perdas do que mais tarde.”
Diplomatas afirmam que o Hamas, classificado como grupo terrorista pelos EUA e pela União Europeia e cujos ex-líderes foram procurados por crimes de guerra, já aceitou que nunca mais governará Gaza, território que controla desde 2007.
Até agora, no entanto, deixava claro que abrir mão das armas era uma linha vermelha, a ser considerada apenas como parte da integração às Forças Armadas de um Estado palestino independente —algo que Israel afirma nunca permitir.
“É realmente um momento de acerto de contas para o Hamas”, disse Amjad Iraqi, analista do International Crisis Group. “Eles sabem que estão muito enfraquecidos. Ao mesmo tempo, têm preocupações estratégicas sobre o que Israel fará, o que os EUA farão e também tentam sobreviver como movimento.”
Autoridades israelenses dizem ter destruído grande parte da capacidade militar do Hamas e esgotado seus estoques de armas. Milhares de seus cerca de 30 mil membros foram mortos, assim como a maior parte de sua liderança militar, incluindo Yahya Sinwar, o arquiteto do ataque de 7 de outubro. Do comando militar anterior à guerra, em Gaza, apenas Izz al-Din Haddad, chefe do braço armado, permanece vivo.
A liderança política no exterior tenta administrar as tensões antigas entre as alas militar e política, que chegam ao auge enquanto o grupo reflete sobre sua sobrevivência. Mas não está derrotado.
“Não é o mesmo Hamas de 7 de Outubro; está muito mais fraco”, disse Michael Milshtein, ex-funcionário de inteligência israelense especialista em assuntos palestinos. “Mas [a facção] sabe como se adaptar e ainda é a força mais dominante em Gaza, não apenas em termos militares, mas também em governança.”
Segundo analistas, o Hamas manteve alguma capacidade de comando e decisão centralizada, nomeou novos líderes e se reagrupou na Cidade de Gaza ao longo do último ano. O enfraquecimento de seus quadros obrigou o grupo a trocar formações militares por táticas de guerrilha.
“O [Exército israelense] continua voltando a certas cidades, especialmente no norte, repetidamente, dizendo que limpou o Hamas, mas depois tem de voltar outra vez”, disse Iraqi. “Está claro que há resistência. Só não é uma luta que esteja mudando o equilíbrio de poder.”
Inspirando-se em seu histórico de resistência armada e em sua popularidade em segmentos da sociedade palestina, o Hamas continua recrutando milhares de jovens de Gaza indignados com o ataque israelense. Mas o nível de treinamento desses novos combatentes é inferior ao dos que foram mortos.
“Há muita motivação entre jovens palestinos para pegar em armas”, disse Iraqi. “Se isso é uma força de combate eficaz, é outra questão.”
Apoiado pelo Irã, o Hamas chegou ao poder em Gaza em 2006, após eleições, e consolidou o controle em 2007 ao expulsar a facção rival Fatah. Mas as décadas seguintes foram marcadas pelo bloqueio israelense, quatro guerras e o assassinato recorrente de líderes militares seniores. Durante todo esse tempo, o Hamas precisou se adaptar às realidades políticas da governança.
O grupo sempre equilibrou múltiplas identidades: resistência armada, movimento político e governo autoritário que controlou Gaza com mão de ferro.
Segundo analistas, os adeptos da linha-dura da ala militar sempre rejeitaram concessões da liderança política, acreditando que nunca traziam resultados.
Aceitar o plano de Trump colocaria o Hamas em um novo caminho. O texto prevê que o grupo aceite não ter qualquer papel no governo de Gaza “direta, indireta ou de qualquer forma”. Ainda assim, há ceticismo na Faixa sobre a possibilidade de o Hamas deixar de existir, dado seu peso no tecido social palestino. O movimento também tem presença na Cisjordânia ocupada, no Líbano e na Jordânia.
Embora muitos palestinos de Gaza culpem o Hamas por provocar a retaliação israelense, analistas dizem que ele continua sendo a facção mais popular no território—mesmo que seu apoio tenha caído para 42%, segundo pesquisa de maio do Centro Palestino de Política e Pesquisa.
“O Hamas tentará sobreviver. Não será erradicado como força política”, disse o historiador palestino Yezid Sayigh. “O grupo tem uma longa história como movimento político. Não há razão para que desapareça — se observarmos outros movimentos da Irmandade Muçulmana, todos sobreviveram sem alas armadas.”
“Mas agora tenta negociar como fazer isso sem se tornar marginalizado politicamente”, declarou Sayigh.
Trump deu ao Hamas apenas alguns dias para responder ao plano de cessar-fogo. Nesta sexta (3), disse que o prazo se encerrará no domingo, às 19h de Brasília.
Estados árabes e muçulmanos que pressionaram por uma trégua ao longo da guerra —incluindo Qatar, Jordânia, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Turquia— endossaram a proposta.
Bishara Bahbah, que atuou como negociador informal em Doha em nome do enviado especial de Trump, Steve Witkoff, disse na terça-feira que o Hamas buscava “esclarecimentos, compromissos e emendas” em alguns pontos do plano.
Esses pontos incluíam um cronograma para a retirada israelense de Gaza, garantias de um fim permanente da guerra e uma definição de desarmamento, declarou Bahbah ao Financial Times.
Mkhaimar Abusada, cientista político da Universidade Al-Azhar em Gaza e hoje radicado no Cairo, afirmou que as consequências da rejeição “serão devastadoras para o Hamas e para os palestinos”.