Qual é o degrau depois do último? Em quase 20 anos de carreira, o rapper Kendrick Lamar construiu um castelo que se tornou farol no hip-hop, uma obra de precisão estética e complexidade discursiva únicas. No último ano, porém, ele desceu do pedestal. Enfurecido, fez da raiva sua gasolina para o disco “GNX” —cujo show trouxe ao Brasil na noite desta terça-feira (30).
A abertura do espetáculo ficou por conta do duo Paco e Ca7riel. Caso raro de argentinos que furaram a bolha da música brasileira —seja pelo grande talento para fazer balanços modernos, seja pelo empurrão da gravadora americana—, a dupla foi escolha de Lamar, dizem nos bastidores, para abrir a turnê na América Latina.
Que os arabescos jazzísticos e o riso solto ficassem na conta deles, pois Lamar não estava para milongas. De preto e roupas largas, chinfra de quem segue e dita a cartilha do rap, o filho mais ilustre da cidade californiana de Compton subiu ao palco com quase uma hora de atraso. Nos telões, vídeos com seu “GNX” —também nome do carro que, no Brasil, seria equivalente a um Opala.
O disco surgiu na esteira da corrida entre o californiano e Drake. No ano passado, ambos protagonizaram uma das maiores disputas do hip-hop contemporâneo em uma série de músicas e letras trocadas como chumbo grosso —não pouparam linhas. O racha terminou com Lamar vitorioso no palco do Superbowl este ano.
Nem álbum nem show giram em torno de Drake. Isso seria uma ideia fixa demais até para Lamar. Mas aquele serviu de bode expiatório para que este desse vazão a um adormecido espírito de combate inerente ao rap. São as faixas orientadas ao desafeto, portanto, que mais causam choque ao vivo, como se o Allianz Parque fosse arena de um único gladiador.
“Foda-se todo mundo, saiba que você é um deus até quando dizem que você não é”, ele rima em “Wacced Out Murals”, faixa que abriu o show. O discurso não é incomum ao “braggadocio” do rap, mas em Lamar há uma nuance. Mais que o conflito com seus pares, o rapper digladia contra si —e o establishment do hip-hop que ele mesmo ocupa.
Em “Euphoria”, faixa que embalou parte dos ataques a Drake, Lamar rima sobre o assombroso beat de Cardo, responsável também por “Goosebumps”, de Travis Scott. Ao vivo, o resultado é ameaçador —Lamar modula sua voz num texto intricado movido tão somente pela busca esmagadora da soberania no rap game.
Meio Fernando Pessoa, o rapper tem um sem fim de heterônimos, mas não se atém só às letras. Rima com a voz anasalada, chata, suaviza o tom no canto e faz uso do vocal fry —uma espécie de rouquidão— quando na faixa “Turn the TV Off” berra —ou chama o berro do público— no já clássico trecho “Mustard”, produtor musical que assina parte de suas músicas mais recentes.
Todo esse arsenal surge de uma só vez em “Not Like Us”. Ápice do show, faixa que lhe garantiu um Grammy este ano, o golpe capital do rapper em seu rival é também a prova mais contundente do conflito que tenta ganhar consigo mesmo. Não por acaso, ele rima: “Eles não são como nós”. É uma afirmação para se distanciar do que julga ser o anti-jogo do rap.
No show, Lamar acentua diferentes espaços da linha, brinca com a prosódia, joga o corpo para ocupar o palco de lado a lado e clama que o público cante a conhecida punchline, ou o arremate de estrofe, “a minor” —”lá menor” ou “uma menor”, a depender do ouvinte. Os acordes de violino ameaçadores, como a trilha sonora de “Psicose”, fazem da música um tétrico espetáculo.
O rapper rejunta seu show com clássicos da sua discografia. Com menos de duas horas de espetáculo e seções bem definidas, faixa a faixa colada uma à outra, ele passa por seções mais importantes de sucessos como “Swimming Pools” e “Poetic Justice”. Em “Bitch Don’t Kill My Vibe”, reduz sua presença a meros adlibs —vocalizações— no refrão.
O show também é uma atualização da linguagem do hip-hop californiano. Assim como São Paulo e Rio de Janeiro se revezam no centro gravitacional do rap no Brasil, com peso inegável de outras cidades, Los Angeles e Nova York sempre apontaram o futuro do gênero. Kendrick faz valer suas origens em faixas como “Squabble Up”, com beat à moda g-funk —do tipo pra escutar recostado no banco da frente do carro e janela meio aberta.
O resgate se torna nostalgia em algumas faixas, com produção despida da aspereza característica dos samples da música negra americana setentista e sintetizador Minimoog —fundamentais para o rap da costa oeste dos anos 1990.
Em “Peekaboo”, com letra repleta de piadas internas e justaposição de imagens, o rapper soa debochado, mas nem tão potente. É a crueza que surge, contudo, em “Good Credit”. Na parceria com Playboi Carti, nome que indica os novos caminhos do hip-hop, Lamar rima sobre bumbo e baixo sujos que fazem tremer a caixa torácica.
Duro sem perder a ternura, Lamar também consegue entregar as composições menos abrasivas que marcaram sua carreira. Nada foge de hits. O público canta ao som de “Rich Spirit” e “Count me Out”, faixa que é seguida por vídeos de sua recente parceria com a cantora Sza, com quem dividiu palco em sua turnê nos Estados Unidos
O show é também um confronto à ideia do intelectual, o oráculo das alas progressistas, figura que lhe tentam colar desde que ganhou um Pulitzer —uma camisa-de-força que reedita o tal porta-voz da periferia, personagem noventista ainda vigente no Brasil entre setores da sociedade que, se não menosprezam, louvam com indulgência paternalista apenas o “rap de mensagem”.
É o deslize que o artista comete em “Reincarnated”. A faixa seria ponto alto para um rapper qualquer, mas Lamar não é um qualquer, e a música soa como bala de festim sobre o palco. O que seria o resgate de um texto melódico e cortante de Tupac se torna algo comum. A via mais acessível, assim como em “gloria” —Lamar afirma que é o alfa e o ômega, como na Bíblia e em dezenas de outras músicas do hip-hop.
Entre saídas certeiras e caminhos tortuosos, ser ou negar o atual estado do rap é, enfim, a raiz do conflito de Lamar em sua atual turnê. Em São Paulo, quem assistiu ao duelo encheu a arquibancada inferior e a pista. A arquibancada superior estava vazia. Para uma noite de terça-feira com ingressos de custo médio equivalente a 25% do salário mínimo, não se pode negar que o show encheu o Allianz Parque.
Nas redes sociais, porém, fãs dizem que só Drake poderia lotar para valer a arena em São Paulo. O canadense, é certo, se consolidou sem nunca esconder seu gosto pela unanimidade e pelo pop. Lamar, porém, tenta se afastar dessa pecha como quem recusa o castelo que ele mesmo construiu: muitas de suas músicas de sucesso, por exemplo, são parcerias com Jack Antonoff, produtor conhecido por trabalhar com Taylor Swift.
Esse e outros fatos não tiram o peso da obra Lamar, que ao vivo segue confirmando seu lugar no topo. Em “Money Trees”, faixa de 2012 que também toca no show, o então jovem artista cantava que “sonha como rappers”. Em “Man in the Garden”, outro ponto chave do show e de seu último disco, Lamar tenta se convencer de que merece tudo o que conquistou —ele vive o sonho como quem ganhou a briga, mas ainda não venceu a batalha.