Tenho uma amiga antropóloga, que considero a maior leitora do Brasil, que certa vez me disse que há jornalistas que dão banho em muito acadêmico. É o caso de Ulisses Campbell, o escritor nacional que mais vem se destacando no ramo de livros true crime.
O true crime é um gênero de entretenimento que narra crimes reais, explorando os acontecimentos, as investigações e as pessoas envolvidas. O advento da internet, com podcasts e canais especializados no tema, deu ainda mais popularidade a este gênero que sempre teve seu público.
Jornalista com experiência nos principais meios impressos do país, Campbell lançou em 2020 o livro “Suzane: Assassina e Manipuladora”, sobre a famosa parricida Suzane Von Richthofen. Sempre pela editora Matrix, em 2021 ele publicou “Elize: A Mulher que Esquartejou o Marido”, sobre a assassina de Marcos Matsunaga, dono da Yoki. Em 2022 Ulisses Campbell lançou “Flordelis: A Pastora do Diabo”, sobre a deputada federal evangélica que armou a morte do próprio companheiro. Este ano Campbell lançou “Tremembé: O Presídio dos Famosos”, sobre a prisão onde estiveram, além de Suzane e Elize, criminosos notórios como Robinho, Roger Abdelmassih, o casal Nardoni, além de vários autores de crimes horrendos que, embora desconhecidos, dão ainda mais tempero ao saboroso livro.
Os títulos e as capas dos livros de Ulisses Campbell são quase sempre muito apelativos. Mas, como sabemos, não devemos julgar o livro pela capa. O autor consegue em sua obra construir cenários complexos, narrativas que prendem tanto a atenção do leitor comum quanto do mais atento, especialmente quando mergulha na alma de matadores perturbados sem glamorizá-los. Respeitosamente, Ulisses conta as histórias das vítimas, quase sempre apagadas em outros relatos desse gênero, onde muitas vezes são meras coadjuvantes dos assassinos. Com seu relato jornalístico cuidadoso, pesquisa fundamentada e perfis ricos em detalhes, atento às miudezas, Ulisses constrói um quebra-cabeças complexo, sensível antropologicamente, superior a muitas verborrágicas teses acadêmicas.
A mais nova empreitada do escritor foi tornar-se roteirista. Campbell será um dos responsáveis pelo roteiro da série “Tremembé”, que estreará dia 31 de outubro na Amazon.
O true crime é o exemplo de um gênero cultural que não existiria se não fosse uma decisão histórica do STF (Supremo Tribunal Federal). Em 2013, sob o pretexto de “respeito à privacidade”, grandes músicos da MPB do quilate de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Djavan, Gilberto Gil, Erasmo e Roberto Carlos mobilizaram-se para perseguir biógrafos. Os artistas queriam que apenas biografias autorizadas fossem permitidas.
Naquela época os autores de biografias não autorizadas vinham sendo acossados por processos e censuras. Ficou famoso o caso do autor Paulo Cesar de Araújo, que teve a biografia “Roberto Carlos Em Detalhes” rasgada em praça pública. Roberto pediu a prisão do escritor e multa de R$ 500 mil por dia de circulação da obra, que acabou censurada. Até Ruy Castro, talvez o mais famoso biógrafo em atividade no país, colunista desta Folha, foi acossado pelos familiares de Garrincha, que o acusaram de lucrar indevidamente com a imagem do craque em sua fenomenal biografia “Estrela Solitária”.
Em 2015, o STF foi chamado para dar seu veredito. O STF deu razão aos biógrafos, que passaram a não mais precisar do aval prévio de biografados ou de suas famílias para escrever livros, roteiros, filmes, peças, etc.
Em 2019, Ulisses Campbell foi processado por Suzane Von Richthofen, descontente com os preparativos de sua biografia não autorizada. A parricida acabou sendo derrotada. Quando publicou seu livro sobre Elize Matsunaga, a assassina estava com um contrato de exclusividade para uma série da Netflix, e não lhe concedeu entrevista. Mesmo assim, o autor pôde lançar seu livro.
Se fosse antes de 2015, perigava Campbell perder essas batalhas e todo o gênero true crime seria debilitado com a decisão. Um mercado não apenas de livros, mas também de documentários, filmes, séries e podcasts correria risco de sequer sair das pranchetas.
A decisão do STF completou dez anos este ano. Seríamos uma sociedade mais fechada se não fosse aquele veredicto histórico.
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