A cidade de Foz de Iguaçu (PR), que recebe neste sábado (20) a cúpula do Mercosul, foi palco há 40 anos de um encontro entre os presidentes de Brasil e Argentina tido como um dos marcos que possibilitaram a criação do bloco.
Diferentemente da situação atual, em que o distanciamento ideológico entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Javier Milei deve render uma interação meramente protocolar entre os dois lÃderes, sem sequer uma reunião bilateral, os então presidentes José Sarney e Raúl AlfonsÃn tiveram uma relação calorosa —ao ponto de Sarney se referir ao argentino como um dos maiores amigos que o Brasil já teve.
No final de novembro de 1985, Sarney encontrou-se com AlfonsÃn em Foz para inaugurar oficialmente a ponte Tancredo Neves, que liga o lado brasileiro à argentina Puerto Iguazú.
Em 1985, Sarney e AlfonsÃn —ambos lÃderes que assumiram governos após um perÃodo ditatorial— lançaram uma declaração conjunta construÃda para superar décadas de rivalidade entre Brasil e Argentina.
Os lÃderes escreveram, nesse documento, que era urgente que a América Latina —à época golpeada pela crise da dÃvida externa— reforçasse seu poder de negociação com o resto do mundo. Sarney e AlfonsÃn prometeram ainda coordenar esforços para revitalizar polÃticas de cooperação e integração na região.
Sarney, hoje com 95 anos, diz à Folha que a rivalidade na área nuclear entre os dois paÃses impedia avanços em acordos econômicos e de comércio.
“Nós não podÃamos avançar nos outros setores, nem no econômico. Naquele tempo eu vivi logo nos primeiros anos a briga do Brasil com a Argentina sobre maçã, sobre trigo. E tudo isso nós resolvemos imediatamente. O Olavo Setúbal [ministro das Relações Exteriores] fez as primeiras gestões e, quando eu cheguei, a partir do acordo nuclear, nós pudemos fazer um avanço muito grande”, afirma Sarney.
Foi em Foz onde Sarney e AlfonsÃn determinaram a criação de um grupo de trabalho sobre cooperação nuclear que possibilitou o lançamento, anos depois, da ABACC (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares).
O órgão permite a fiscalização de instalações nucleares entre os paÃses e foi fundamental para afastar de vez o fantasma de uma corrida armamentista nas duas maiores nações da América do Sul.
Tanto do lado brasileiro quanto do argentino havia resistências a uma aproximação, relembra Sarney, principalmente em setores militares.
Da passagem por Foz há 40 anos, Sarney cita como um dos momentos mais marcantes a decisão —tomada de última hora— de fazer uma visita com o lÃder argentino à usina de Itaipu. A megaobra de engenharia partilhada entre Brasil e Paraguai não era bem-vista na Argentina, vista pela ala fardada como um risco à segurança do paÃs vizinho.
“No dia que nós estávamos juntos em Foz do Iguaçu, eu disse: ‘Presidente, a nossa situação é tão estranha que o senhor está aqui diante de uma das obras mais fantásticas do mundo moderno, uma catedral, que é a usina de hidrelétrica. [Mas] o senhor não pode visitar porque na Argentina acham que isso é uma bomba d´água contra a Argentina”, relembra Sarney.
“O AlfonsÃn teve a grande coragem de bater uma foto comigo no vertedouro de Itaipu. Essa foto foi viralizada —para usar a nomenclatura de hoje— na Argentina toda e ele foi muito atacado por isso.”
A construção de um ambiente de confiança a partir do encontro em Iguaçu abriu as portas para uma série de novas reuniões e ações de integração comercial que resultaram, em 1991, na constituição do Mercosul —Paraguai e Uruguai pediram para se unir ao projeto que era, até então, focado na integração entre Brasil e Argentina.
Sobre o estado atual do bloco, Sarney opina que ele ficou “meio perdido” e tirou de foco um dos seus principais objetivos.
“Eu acho que falta a concepção do que era o Mercosul, uma busca do mercado comum. Perdeu-se o objetivo. Ele ficou meio perdido nessa perseguição da tarifa zero. É preciso que haja de novo um consenso entre os paÃses da América Latina —e essa visão mais alta— de que nós temos de construir uma força dos nossos paÃses para termos mais presença a nÃvel mundial”, afirma.
“E hoje o mundo é muito diferente daquele tempo. Hoje é um mundo ideológico [entre] direita e esquerda. A direita ganhou muita força. Em alguns paÃses ela se tornou dominante. E nossa ameaça hoje é a de voltarmos a uma guerra fria, aquela que foi encerrada naquele tempo.”



