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Brasil é líder contra fascismo, diz filósofo dos EUA – 14/12/2025 – Mundo

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro (PL) têm muito em comum. Tratam-se de líderes de direita antissistema que chegaram ao poder de forma inesperada em uma eleição polarizada e que, tendo sido derrotados em tentativa de reeleição, agiram para tentar reverter o resultado nas urnas —culminando em uma invasão violenta a prédios públicos.

O desdobramento desses episódios, entretanto, foi radicalmente diferente nos dois países. No Brasil, Bolsonaro foi primeiro declarado inelegível e depois, condenado no julgamento da trama golpista e preso. Nos EUA, Trump passou quatro anos reconstruindo sua influência no Partido Republicano até vencer a eleição de 2024 e voltar à Casa Branca.

Para especialistas, a prisão de Bolsonaro marcou um ponto fora da curva entre líderes considerados autoritários do século 21. Um dos estudiosos que prestou atenção nisso foi o filósofo americano Jason Stanley, um dos mais importantes especialistas em fascismo do mundo e autor do livro “Como Funciona o Fascismo”.

Stanley era professor da Universidade Yale até decidir, em março deste ano, que deixaria os EUA junto com a família por temer que o país se tornasse uma ditadura fascista em breve. O intelectual se autoexilou no Canadá, onde chegou em setembro deste ano para trabalhar na Universidade de Toronto.

Em entrevista à Folha por telefone, Stanley diz que considera o Brasil um líder na luta contra o fascismo mundial, fala sobre as tentativas de Trump de redefinir o que significa ser americano, e especula quais podem ser os próximos passos de seu governo.

Como o senhor decidiu que deixaria os EUA?

No começo, era uma declaração política contra o regime Trump. Mas a ficha só caiu que eu realmente estava mudando de país quando de fato me mudei. Aí deixou de ser uma declaração política e se tornou uma realidade.

Eu morava na região de Nova York desde 2004, tinha muitos amigos. Quando você muda de país, perde seus amigos, tem de tirar novos documentos, é duro. Mas aqui no Canadá eu não preciso ficar me preocupando se as coisas que eu digo vão afetar a instituição em que trabalho.

E como o senhor avalia essa escolha agora? O que fez desde que saiu de seu país?

Bem, eu viajei o mundo. Eu acho que a luta contra o fascismo é uma luta global, e o Brasil está no centro dessa luta. O Brasil deu o exemplo e mandou seu líder autoritário, Jair Bolsonaro, para a cadeia por tentar permanecer no poder [após perder as eleições].

Apesar de enormes obstáculos, apesar da sua Suprema Corte ter sido alvo de sanções, o Brasil liderou a luta contra o fascismo. Suas instituições se mantiveram de pé. E o mundo agora quer entender como o Brasil fez isso, como derrotou esse inimigo. Todo mundo ama o Brasil neste momento e se pergunta: como vocês conseguiram?

Se o senhor tivesse que arriscar, como acha que o Brasil conseguiu?

Não sei. Seus ministros [do Supremo Tribunal Federal] foram corajosos, suas instituições foram sólidas, talvez o seu líder autoritário não conseguiu mobilizar a opinião pública de maneira eficaz ou não foi muito competente como líder autoritário.

Mas creio que a resposta está nas instituições: a imprensa permaneceu crítica, inclusive a Folha e a jornalista Patrícia Campos Mello, que não se permitiu ser intimidada apesar de ser atacada por Bolsonaro. O povo não foi intimidado. Os juízes e os jornalistas não foram intimidados.

Havia uma impressão de que as instituições americanas eram sólidas, e que Trump teria dificuldade em erodi-las, mas o que vemos é outra coisa: a Suprema Corte, as universidades e parte da imprensa buscaram acomodar o presidente. Por quê?

Havia mesmo essa impressão? Sabe, eu gosto de conversar com jornalistas brasileiros porque vocês são muito mais realistas sobre os EUA do que os europeus. Os jornalistas europeus dizem: meu Deus, a América, a terra do leite e do mel, a terra da liberdade, o que está acontecendo? Mas os brasileiros me perguntam: quanto tempo a ditadura vai durar por aí? Vocês são latino-americanos, vocês não acreditam que os EUA sejam um paladino da democracia e da liberdade, acreditam?

É difícil acreditar nisso quando o golpe de 1964 foi apoiado pelos EUA.

Exatamente! Nós derrubamos governos e, quando vocês ficam democráticos demais, isso nos incomoda. Então, para responder sua pergunta, os EUA são um país corrupto. Basta olhar para os oligarcas e bilionários e a forma como o dinheiro tem um papel tão gigante na nossa política.

Explicar o escândalo que [tornou Bolsonaro inelegível por abuso de poder econômico e político] é impossível nos EUA: nós não temos leis de financiamento de campanhas eleitorais!

A realidade é que somos um país muito corrupto que, de alguma forma, vendeu a propaganda para o mundo de que não somos.

Então o senhor não está surpreso ao ver as instituições cedendo a Trump.

Não. As instituições sempre se entreolham para saber quem está resistindo e quem está cedendo, e isso aconteceu nos EUA. Além disso, o regime Trump atacou uma por vez: um escritório de advocacia por vez, uma universidade por vez. Cada instituição que não foi atacada achou que estava escapando. Foi uma estratégia muito inteligente.

Há também o fato de que os oligarcas pró-Trump têm muito poder. Eles estão comprando cada vez mais veículos de imprensa, estão em cada vez mais conselhos de universidades. A estrutura dos EUA, há décadas, funciona para colocar tudo no bolso desses oligarcas. Dessa forma, basta que um autocrata apareça para controlar esses oligarcas e eles fazem tudo o que ele quiser para conseguir dinheiro do governo.

O senhor escreveu muito sobre fascismo e propaganda. Acredita que o objetivo final de Trump seja inaugurar uma ditadura fascista nos EUA?

Trump está envelhecendo, e deve haver uma disputa por sucessão em breve. O mundo tem sorte de Trump ter 79 anos de idade. Então, mais importante do que perguntar o que Trump quer é perguntar o que a máquina por trás dele quer.

Essa máquina é composta de diferentes grupos: um deles é abertamente supremacista branco, xenofóbico e fascista, sem dúvida. Outro orbita a manosfera. Outro são os oligarcas e bilionários que manipulam essas pessoas, que dizem: me dê o seu dinheiro e em troca destruiremos seus inimigos. Isso acontece nos EUA e no Brasil, aliás.

Mas esses grupos não têm os mesmos objetivos, o que os une é a figura de Trump. A questão é: qual deles vai liderar o movimento Maga? Não sabemos. J. D. Vance é o sucessor óbvio, e ele parece desejar uma ditadura cristã na qual ele tem todo o poder. Ele vai conseguir? Há forças poderosas que se opõem a isso.

Ao mesmo tempo, Trump ainda não agiu nesse sentido. Há um Judiciário independente nos EUA, e haverá eleições no próximo ano.

Ele não conseguiu consolidar seu poder, não. Mas o Partido Republicano parece acreditar que vai ficar no poder para sempre. Trump deu aos republicanos a sensação de que jamais haverá outro presidente do Partido Democrata.

Além disso, acredito que a Suprema Corte dos EUA age com a intenção exclusiva de manter no poder um partido de extrema direita e garantir que os oligarcas continuem enriquecendo —outra razão pela qual o que aconteceu no Brasil foi tão importante, porque vocês têm um Supremo independente.

Dessa forma, há forte apoio para que um ditador assuma o poder nos EUA no futuro próximo. Mas há também grande resistência da sociedade civil americana.

Quando digo que Trump não consolidou poder, quero dizer que os eleitores não estão intimidados. As instituições, sim, mas não os eleitores. E há políticos como Zohran Mamdani [prefeito eleito de Nova York] e Gavin Newsom [governador da Califórnia] que enfrentam Trump de uma forma que a imprensa, as universidades, os tribunais e os escritórios de advocacia não fazem.

Ou seja, há oposição. Mas Vance, se conseguir suceder Trump, seria implacável e muito eficiente em consolidar poder e criar uma ditadura e Estado de partido único.

Qual o papel de agências como o ICE [o serviço de imigração dos EUA] nesse projeto, na opinião do senhor?

Trata-se de supremacia branca e crueldade explícita. Os agentes do ICE estão normalizando nos EUA as táticas que ditaduras violentas usam: sequestros, enfiar pessoas em carros… e estão anunciando para o mundo: “O negócio dos Estados Unidos é a crueldade. Os EUA são um país de ódio. É isso o que somos”.

Eles querem mudar a definição do que os EUA significam para o resto do mundo. O que é ser americano? É ser cruel, odioso, impiedoso e racista. Essa é a mensagem. Ser um patriota americano é tirar crianças pequenas de seus pais. É tratar pessoas não brancas como lixo. É jogá-las em um lugar sem camas e quase nenhuma comida e deixá-las lá, sem contato com a família, por tempo indeterminado.

A analogia histórica do ICE são as SA [a Sturmabteilung, ou divisão de assalto, os camisas-pardas da Alemanha nazista]. O governo diz para quem quiser ouvir que, nessa organização, você pode ser tão cruel quanto quiser. É uma redefinição dos EUA. O ICE é o novo rosto do país.

O senhor mencionou a Alemanha nazista. Historicamente, o fascismo ganhou força na Europa depois de grandes crises e no cenário de devastação da Primeira Guerra Mundial. Não há crises comparáveis no mundo desenvolvido hoje. O que alimenta movimentos de extrema direita contemporâneos?

Essa é a grande questão. Na Suécia, na Alemanha, não há desespero econômico, não há filas de pessoas com fome. E ainda assim partidos fascistas nesses e em outros países são cada vez mais populares. É um mistério se pensarmos na história clássica do fascismo no século 20. O que acontece é que esses partidos de hoje inventam crises, como a crise cultural, a crise da imigração. São, em grande parte, crises inventadas, mas que parecem ter efeito como se fossem reais.

Nós, estudiosos do fascismo, achávamos que era necessária uma crise econômica e a ascensão de um líder carismático para que [o movimento] ganhasse força, mas isso não parece mais ser verdade. Ao exacerbar o medo do outro, ao investir no nacionalismo cristão, na homofobia, no patriarcado, é possível criar uma crise.

O grande inimigo, então, se torna a ideologia woke. O cartão de visita do fascismo hoje, em qualquer lugar do mundo, é ser contra o woke —ser contra pessoas trans, por exemplo. Da Rússia ao Brasil. E, de alguma forma, isso funcionou.

Trump parece estar tendo dificuldades com a economia e com sua taxa de aprovação nas pesquisas. O que podemos esperar de seu governo nos próximos meses?

Já estamos vendo o autoritarismo acelerar à medida que a popularidade de Trump se esvai. Minha esperança é que o Partido Republicano perceba que não pode mais usar Trump porque ele é velho demais.

Aí vai haver uma disputa, como conversamos, e acho que ela será cada vez mais pública, e veremos pânico das figuras que tentam manter a coalizão de Trump unida. A partir daí, quem sabe o que vai acontecer? Talvez alguns republicanos decidam que chegou a hora de voltar ao normal.

O que precisa acontecer para que o senhor retorne aos EUA?

O que eu estou tentando fazer aqui em Toronto é criar um polo de resistência ao autoritarismo. O Canadá, acredito, é o lugar ideal para fazer isso hoje. Eu vejo o problema de maneira internacional, e por isso o Brasil é tão importante também. Não quero ficar falando só sobre os EUA. Nem tudo é sobre os EUA. O Brasil provou isso.


Raio-X

Jason Stanley, 56, é filósofo e professor de Estudos Americanos na Murk School of Global Affairs da Universidade de Toronto, no Canadá. Nascido no estado de Nova York em uma família judia, é doutor pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e autor dos livros “Como Funciona a Propaganda”, “Como Funciona o Fascismo” e “Apagando a História”. Tem dois filhos com a cardiologista Njeri Thande.

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