Não causa espanto que o presidente do Brasil e o dos Estados Unidos cultivem visões de mundo distintas. Em seus discursos na abertura do debate geral da Assembleia-Geral da ONU, ocorrido nesta terça-feira (23), o cisma ficou ainda mais evidente.
Havia um tom sombrio nas palavras do presidente americano ao evocar as grandes crises contemporâneas. Trump apontou dois inimigos centrais: a migração descontrolada e o alto custo das energias renováveis, forças que, em sua visão, arriscam destruir sociedades e o mundo livre.
A Guerra da Ucrânia foi descrita como um conflito “que nunca deveria ter ocorrido”. Os Estados Unidos estão dispostos a agir mais severamente contra a Rússia, sob a condição de que a Europa deixasse de consumir a energia vinda do Leste. China e Índia surgiram como principais financiadoras da guerra. Ao construir esse cenário ameaçador, Trump parece desenhar o terreno retórico que justificaria a adoção de medidas rigorosas contra tais riscos.
Para Lula, o autoritarismo, a desigualdade e a devastação ambiental e a crise climática precisam ser combatidos. Ao abordar os conflitos mundiais, criticou a militarização das relações internacionais conclamada por Trump. Para ele, bombas e armas nucleares não vão proteger o mundo da crise climática, chamando a atenção para a COP30 que ocorrerá em Belém. O tom enérgico de Lula em suas críticas ressoava o permanente discurso de reforma das instituições e de solução pelo multilateralismo.
Se Lula criticou o fato de que os princípios que regem as Nações Unidas estão sendo abandonados, Trump não poupou críticas à organização e sua ineficiência. Incapaz de resolver guerras e favorecendo migrações, o dano que a ONU estaria causando à humanidade só tem uma solução: unilateralismo. Talvez seja essa a tônica de fundo da oposição entre os dois discursos: a confiança nas soluções conjuntas versus a ação individual capaz de resolver problemas.
De certo modo, como ocorrem nesses encontros, ambos os discursos seguiram uma esperada cartilha das prioridades e méritos dos respectivos governos, mirando naturalmente audiências domésticas, mas também selecionando cuidadosamente as mensagens a serem enviadas ao mundo.
O discurso do presidente Lula teve uma nota diferencial de seus discursos passados. Continha mensagens diretas e indiretas à administração estadunidense em relação às tensões que assolam os dois Estados. Caracterizou de ilegal as ações americanas, suas tarifas arbitrárias e seu unilateralismo. Sugeriu cumplicidades com os crimes em Gaza. Caracterizou as ações comerciais e tarifárias como erosivas do sistema multilateral de comércio. Ao mencionar democracia e soberania, aplausos ecoaram no salão da Assembleia Geral.
Trump não deixou Lula sem resposta. Não deu ao Brasil o mesmo tom ácido que dispensou ao Irã e à Venezuela. Mas enfatizou que violações de direitos humanos ocorrem no Brasil, que estaria sendo tarifado pelos seus “esforços sem precedentes” de interferir nos direitos e liberdades de cidadãos americanos, estimulando censura e mirando seus críticos nos Estados Unidos por corrupção judicial.
No fim, a justaposição entre Lula e Trump reflete muito mais do que divergências pessoais: expõe duas narrativas concorrentes sobre o papel do direito e da política no cenário internacional. De um lado, a aposta no multilateralismo, na cooperação e na urgência climática; de outro, a defesa do unilateralismo, da força e da contenção migratória. Ao ecoarem no mesmo púlpito da Assembleia Geral, esses discursos deixam claro que a disputa por legitimidade e liderança global passa, antes de tudo, pela forma como os Estados narram suas crises e apontam as soluções que pretendem projetar ao mundo.
O discurso de Trump encerrou com uma sinalização positiva em relação ao encontro que terá com Lula na semana que vem. Havia otimismo em suas palavras de que soluções para as tensões podem ser orquestradas. Se é verdade que Brasil e Estados Unidos têm enorme potencial para diminuírem suas tensões, parece ser motivo de incerteza qual visão de mundo prevalecerá.