Os Estados Unidos não foram mencionados nem uma única vez no discurso de abertura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, o país e seu líder, o presidente Donald Trump, foram destinatários indiretos de quase 75% da fala de Lula, segundo levantamento da Folha.
O líder brasileiro recheou seu discurso com recados críticos a Trump sobre a disputa entre Brasil e EUA, Gaza, Organização Mundial do Comércio (OMC), ONU, regulação de plataformas digitais, multilateralismo e negociação climática.
Logo no início, Lula mencionou “atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”, referência às tarifas e sanções do governo Trump contra o Brasil e autoridades brasileiras em retaliação ao julgamento e condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Lula atacou também “a agressão contra a independência do Poder Judiciário” e a “ingerência em assuntos internos”com “auxílio de uma extrema direita subserviente e saudosa de antigas hegemonias.”
A palavra soberania, aliás, foi mencionada 3 vezes.
Ao detalhar os passos do processo contra Bolsonaro e enfatizar o direito à defesa, Lula também estava passando recado para Trump e autoridades de seu governo, que afirmam, repetidamente, que o julgamento foi arbitrário.
“Foi investigado, indiciado, julgado e responsabilizado pelos seus atos em um processo minucioso. Teve amplo direito de defesa, prerrogativa que as ditaduras negam às suas vítimas”, disse.
Também no início da fala, o petista tentou fazer a esquerda se reapropriar da defesa da liberdade, o mote do governo Trump e outras administrações de direita.
“Em todo o mundo, forças antidemocráticas tentam subjugar as instituições e sufocar as liberdades”- ou seja, em vez de o Judiciário brasileiro ser uma ameaça à liberdade, é a tentativa de enfraquecer instituições que a coloca em risco. Ele mencionou também que essas forças, alusão à direita, é que “cerceiam a imprensa”, ao contrário do que afirmam conservadores,
Lula criticou indiretamente a campanha de Trump de deportação de imigrantes que “fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo”. E alfinetou o fato de os EUA terem sabotado as negociações globais no âmbito da OCDE para estabelecer critérios de tributação global.
O presidente brasileiro também rechaçou as tentativas dos EUA de impedirem países de implementarem regulação de empresas de tecnologia –as Big Tech são, na grande maioria, americanas. Trump ameaça retaliar com tarifas e sanções integrantes de governos que adotam legislação. Foi uma das justificativas para investigação da seção 301 aberta pela Casa Branca contra o Brasil. O tema também já foi mencionado textualmente em ameaças de taxação contra a UE, que implementou sua Lei de Servicos Digitais e Lei de Mercados Digitais, que já estabeceram multas contra algumas das Big Tech.
“Regular não é restringir a liberdade de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim no ambiente virtual. Ataques à regulação servem para encobrir interesses escusos e dar guarida a crimes, como fraudes, tráfico de pessoas, pedofilia e investidas contra a democracia.”
Outro recado explícito, apesar de não nomear os EUA, é em relação a equiparar criminalidade a terrorismo. Essa é a justificativa usada pelo governo americano para seus ataques recentes a embarcações venezuelanas, que acusam de envolvimento em narcotráfico. Lula voltou a criticar o fato de os EUA incluírem Cuba na lista de países que patrocinam terrorismo, o que implica inúmeras sanções contra a ilha.
Em relação a Gaza, conflito chamado de genocídio pela primeira vez por Lula em um discurso na ONU, as críticas foram ainda mais afiadas –o brasileiro fez alusão aos EUA como cúmplices. “Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo.”
Lula lembrou que os EUA foram os únicos a bloquearem resolução da ONU apoiando o Estado Palestino. “Esta é a solução defendida por mais de 150 membros da ONU, reafirmada ontem, aqui neste mesmo plenário, mas obstruída por um único veto.” E criticou o fato de os EUA terem barrado a entrada do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, no país, impossibilitando sua participação na Assembleia Geral e desrespeitando o acordo sede.
O brasileiro também rechaçou indiretamente tarifaço de Trump, que solapa o sistema multilateral de comércio, e a insistência dos EUA em não aprovar juízes para o órgão de Solução de Controvérsias da OMC, o que, na prática, paralisa a instituição.
“Medidas unilaterais transformam em letra morta princípios basilares como a cláusula de Nação Mais Favorecida.”
A última vez que os Estados Unidos foram mencionados diretamente em um discurso de um presidente brasileiro na Assembleia Geral da ONU foi no governo Bolsonaro, em 2019 e 2020. Em seu discurso apocalíptico de 2019, Bolsonaro citou Trump e os EUA de forma elogiosa, dizendo que o líder americano “bem sintetizou o espirito que deve reinar entre os países da ONU: respeito à liberdade e à soberania” e celebrou a “parceria abrangente e ousada”com o governo americano. .
Desta vez, ainda que não tenha pronunciado as palavras Estados Unidos ou Trump, nunca um discurso presidencial na ONU foi tão direcionado a Washington. E não houve uma única menção positiva – a não ser uma tépida aprovação da cúpula de Trump e Vladimir Putin no Alasca e a defesa de uma solução negociada na Ucrânia.