A América Latina acaba de perder Héctor Alterio, um de seus principais atores, que teve a carreira marcada por prêmios que incluem o Oscar de melhor filme estrangeiro por “A História Oficial” — um dos melhores retratos de como a Argentina saiu transformada para sempre depois da ditadura no país (1976 – 1983).
Sua versatilidade era notória e se mostrou em pelo menos dois dos principais papéis que interpretou. Em “A História Oficial”, de Luis Puenzo, deu vida ao personagem cruel e cúmplice da repressão, que aceita adotar uma criança filha de desaparecidos e chega a torturar a mulher, que o questiona.
Já em “O Filho da Noiva”, de Juan José Campanella, surge como um homem idoso, amoroso, disposto a se casar com a mulher que ama mesmo quando ela está com Alzheimer. Em ambos, contracena com a gigante Norma Aleandro, uma espécie de Fernanda Montenegro do país vizinho.
A versatilidade de Alterio não era apenas técnica. Dizia respeito a uma forma de entender a atuação como tradução sensível da história argentina.
Em “A História Oficial”, filme lançado pouco depois do fim do regime militar, quando o país começava a enfrentar os atrozes crimes cometidos pela repressão, Alterio encarna um empresário bem-sucedido, marido de uma inocente professora de história que vivia alienada, sem ter percebido que mais de 20 mil pessoas tinham desaparecido no período e que ela, até então inconscientemente, era cúmplice.
Alterio representa ali a responsabilidade civil de parte da sociedade, a do poder econômico que preferiu pactuar com os militares. É uma atuação fundamental para entender como o cinema argentino começou a elaborar, ainda nos primeiros anos da redemocratização, o trauma do terrorismo de Estado.
Anos depois, em “O Filho da Noiva“, já em outra Argentina, na que foi ferida pelo colapso econômico de 2001, Alterio surge como um homem sensível, que ao final de sua vida decide realizar o sonho de sua mulher, que tem Alzheimer. Sem apelar ao melodrama, Alterio constrói um personagem que insiste no amor e no rito como formas possíveis de resistência em um país exausto.
Entre esses dois filmes, separados por décadas e por contextos históricos distintos, está a trajetória de Alterio. Nascido em Buenos Aires, ele construiu uma carreira marcada pelo compromisso artístico e político.
Nos anos 1970, de efervescência cultural na Argentina, atuou em “La Patagonia Rebelde”, sobre a repressão violenta do Exército às greves de trabalhadores rurais nos anos 1920.
Esse filme o colocou na mira da Triple A (espécie de esquadrão da morte nascido ainda no governo Perón) — o que o levou a se exilar na Espanha.
Mesmo assim, Alterio continuou sendo um ator central do cinema argentino. Sua carreira atravessou o Atlântico sem perder densidade, e o desgarro do desterro transformou-se em matéria artística. Quando o cinema nacional começou a se renovar, já nos anos 1990 e 2000, ele reapareceu como figura-chave.
Trabalhou com Marcelo Piñeyro em filmes como “Caballos Salvajes” e “Plata Quemada“, dando vida a personagens que questionavam o cinismo do poder e o vazio deixado pelo neoliberalismo.
Alterio foi também uma ponte entre gerações. Sua presença ajudou a ancorar o chamado “boom” do cinema argentino dos anos 2000 em uma tradição anterior, politizada e exigente.
A morte de Héctor Alterio aos 96 anos, anunciada no último dia 13, marca a despedida de uma consciência artística que atravessou os anos mais duros da Argentina e soube transformá-los em arte.
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