O Cinesesc, em São Paulo, promove uma mostra essencial, “Truffaut por Completo”, com os filmes dirigidos por François Truffaut, um dos principais nomes da nouvelle vague francesa e do cinema moderno.
Truffaut foi um dos chamados jovens turcos, críticos que fizeram parte, nos anos 1950, da prestigiada revista Cahiers du Cinéma. Na companhia de Jean-Luc Godard, Jacques Rivette e Éric Rohmer, comandou uma revolução contra o estado do cinema francês, calcado em adaptações de prestígio e grandes atrizes.
Numa primeira fase da nouvelle vague, foi Agnès Varda, com “La Pointe Courte”, de 1956, e Claude Chabrol, com “Nas Garras do Vício” e “Os Primos”, ambos de 1958, que deram a largada. Truffaut veio logo depois com seu primeiro longa, “Os Incompreendidos”, de 1959. Nessa época, a liderança do movimento era dele, assim como os textos mais fortes.
O ano de 1959 foi, de fato, a eclosão da nouvelle vague. Além da estreia de “Os Incompreendidos” em Cannes, houve ainda, na mesma edição, a estreia de “Hiroshima Mon Amour”, de Alain Resnais. Um pouco antes de Cannes, estreavam no circuito os dois longas de Chabrol.
Após o estrondo causado por esses quatro filmes, era necessário continuar na crista da onda, o que é sempre mais difícil. Truffaut, que bateu pesado em boa parte do cinema francês da época, não podia errar.
Mas seu segundo longa, “Atirem no Pianista”, ficou bem distante do sucesso da estreia. As pessoas que se aproximaram de Truffaut agora lhe davam as costas. O romântico rebelde aprendeu que não existem amizades verdadeiras quando há muito ego envolvido.
Em 1961, não era só Truffaut que estava em baixa, era toda a nouvelle vague, com filmes não muito bem-sucedidos ou engavetados na distribuição. “Jules e Jim”, no ano seguinte, foi a salvação da lavoura. O terceiro longa do francês, baseado em livro autobiográfico de Henri-Pierre Roché, moderniza o romantismo —formulação possível no cinema— com sua câmera ligeira e sua montagem cubista.
Cubista? Vejam a apresentação de Catherine, personagem de Jeanne Moreau, com cortes rápidos e mudanças bruscas de ângulo, e como essa apresentação rima com as telas de Picasso espalhadas pelo filme.
De fato, se há uma obra que represente perfeitamente a nouvelle vague, mais do que “Os Incompreendidos” e mais do que “Acossado”, que está longe de ser o melhor momento de Godard, é “Jules e Jim”. Eis o longa que representa todas as virtudes estéticas do movimento e ultrapassa os pontos fracos notados em filmes anteriores.
A nouvelle vague estava salva, mas seus criadores estavam amadurecendo e logo seguiriam caminhos diferentes. A essência da nouvelle vague não duraria muito mais. Restariam belos estilhaços.
Em “O Desprezo”, de 1963, Godard meio que se despede da nouvelle vague, mas jamais da modernidade. Truffaut faz o mesmo com “Um Só Pecado”, de 1964. Mesmo que um e outro voltem a fazer filmes mais sintonizados com esses trabalhos de início de carreira, eles caminharam em direções bem diferentes já no restante da década.
Godard se tornou um diretor radical, depois um experimentador do vídeo, até um retorno ao cinema nos anos 1980. Truffaut abraçou o romantismo e fez seus melhores filmes nos anos 1970 —”O Garoto Selvagem”, de 1970, “As Duas Inglesas e o Amor”, de 1971, nova adaptação de Roché, e o dilacerante “O Quarto Verde”, de 1978.
Cineasta das primeiras décadas do século 20, podemos pensar. Mas também do século 19, sobretudo no belíssimo “A História de Adèle H.”, sobre a filha do escritor romântico Victor Hugo. Nesse filme, Isabelle Adjani tem o maior papel de sua carreira como a protagonista atormentada por um amor não correspondido.
Se um romantismo tardio atravessa praticamente toda a carreira de Truffaut, intensificando-se nesses filmes citados, há outros dois fatores que não devem ser ignorados, cada um com um grupo de filmes importantes para o reforçar.
O primeiro é o autobiográfico. A autobiografia, tingida pelos raios da ficção, está em toda a série com o personagem Antoine Doinel, sempre interpretado por Jean-Pierre Léaud.
São desse grupo, além do longa de estreia, o média “Antoine e Colette”, de 1962, e mais três longas —“Beijos Proibidos”, 1968, “Domicílio Conjugal”, 1970, e “Amor em Fuga”, de 1979.
Podemos incluir nesse grupo o maravilhoso “O Garoto Selvagem”, de 1970, em que o próprio Truffaut interpreta um professor que adota um menino que vivia na selva. Esse menino parece uma versão mais primitiva de Antoine Doinel, e Truffaut certamente estava ciente dessa associação.
Podemos incluir também o adorável “Na Idade da Inocência”, de 1976, versão colorida e, ao mesmo tempo, mais inocente e madura de “Os Incompreendidos”. E, de um outro modo, “A Noite Americana”, de 1973, já que Truffaut interpreta um cineasta preocupado porque faz um filme medíocre.
O segundo fator é o fascínio de Truffaut pelo cinema de Alfred Hitchcock, que aumentou depois das entrevistas com o mestre para o lançamento do livro “Hitchcock/Truffaut”, presença obrigatória em qualquer biblioteca de cinema que se preze.
Esse fator é responsável por influenciar praticamente todos os filmes surgidos desde 1966, mas principalmente “A Noiva Estava de Preto”, de 1967, “A Sereia do Mississippi”, de 1969, “O Último Metrô”, de 1980, e seu longa derradeiro, “De Repente, num Domingo”, de 1983.
“A Noite Americana” estaria ainda em uma outra linhagem, a dos filmes de encantamento pela arte, seja um filme de cinefilia como “Atirem no Pianista”, de 1960, seja o encanto pela literatura, ameaçada em “Fahrenheit 451”, de 1966, valorizada em “As Duas Inglesas e o Amor”.
Por outro lado, Truffaut era obsessivo. E a obsessão está presente sempre que ele assume o papel principal —”O Garoto Selvagem”, “A Noite Americana” e “O Quarto Verde”.
Que o espectador seja também obsessivo e mergulhe nessa mostra. Truffaut era tão bom cineasta quanto crítico, além de ser cineasta enquanto crítico e crítico enquanto cineasta. É tudo que essa arte tão maltratada sempre precisou.



