Depois de imprimir retratos ampliados de pessoas comuns por cidades do interior da França, Agnès Varda admitiu que estava realizando seu maior desejo, aos 89 anos. “Conhecer novos rostos e fotografar, para que eles não caiam nos buracos de minha memória”, disse a cineasta no documentário “Visages, Villages“, de 2017. Naquele ano, ela se tornou a primeira diretora a vencer um Oscar honorário pelo conjunto da obra.
Varda morreria menos de dois anos depois, aos 90, de câncer. “Visages, Villages” expressou o seu retorno à fotografia, ofício ao qual se dedicou antes de se tornar uma expoente da nouvelle vague —ela foi uma voz feminina isolada no movimento que mudou o fazer cinematográfico no mundo ao priorizar a experimentação. Os cliques de sua juventude são expostos agora, muitos de forma inédita, no Instituto Moreira Salles, que também exibirá os filmes da diretora nos próximos meses.
A exposição em São Paulo acontece pouco tempo depois de uma outra mostra em Paris, no Musée Carnavalet, “Le Paris d’Agnès Varda De-Ci, De-Là”, com imagens feitas nos anos 1950. Na época, Varda dividia um apartamento com a amante, a escultora Valentine Schlegel, no boêmio bairro parisiense de Montparnasse. As fotos em branco e preto mostravam artistas como o diretor italiano Federico Fellini e o escultor americano Alexander Calder à luz de certa decadência esperançosa dos becos parisienses no pós-Guerra ou, ainda, pessoas comuns vivendo o seu dia a dia no vai e vem das ruas.
As fotografias trazidas ao Brasil, porém, não se limitam aos muros de Paris e revelam um panorama mais amplo da produção de Varda. Elas mostram os bastidores de “La Pointe-Courte”, seu primeiro filme, e de ensaios do Les Griots, companhia de teatro negro pioneira da França. Há ainda raros cliques coloridos das viagens de Varda a Cuba e à China.
“Não faz muito tempo que o trabalho fotográfico de Agnès vem sendo exibido”, diz Rosalie Varda, produtora de “Visages, Villages” e curadora da exposição no IMS. Não fosse o sobrenome, a baixa estatura, os olhos verde-esmeralda e o nariz saltado denunciariam que ela é filha da artista.
“Quando ela começou, era difícil ser mulher e fotógrafa. As agências lidavam mais com homens”, diz a filha. Mas Varda não desanimou. Em 1957, embarcou para a China para fotografar uma delegação de políticos franceses, mas estava mais interessada nas famílias e nos templos de Pequim. Capturou testemunhos de uma sociedade enérgica antes da Revolução Cultural, com artistas de rua fazendo acrobacias, festas populares e até pescadores na labuta.
Com a fotografia, Varda treinou seu olhar para o cinema e definiu pessoas da vida real como protagonistas. “Ela dava essa importância extraordinária para as pessoas. Agnès nunca esqueceu que era mulher e isso significava um interesse específico sobre o mundo e as pessoas que estavam sofrendo”, afirma João Fernandes, diretor artístico do IMS e curador da mostra ao lado de Rosalie Varda.
“La Pointe-Courte” narra a jornada de um casal que retorna ao vilarejo natal do marido, onde discutem a relação em meio ao fluxo cotidiano dos outros moradores. O filme se tornou um precursor da nouvelle vague, embora especialistas apontem que Varda recebeu menos louros que seus colegas homens na época, sendo propriamente reconhecida mais tarde, na década de 1980.
Seus filmes inovaram ao capturar experiências femininas sem os filtros da sexualização ou da dependência masculina. Exemplo é “Cléo das 5 às 7“, de 1962, que será exibido no IMS em janeiro. O filme acompanha duas horas na vida de Florence Victoire, cantora em ascensão que aguarda pelo resultado de um exame para descobrir se está com câncer.
Não por acaso, hoje várias cineastas celebradas da nova geração já disseram encontrar inspiração na obra de Varda, como a espanhola Carla Simón, que disputou a Palma de Ouro no Festival de Cannes neste ano, e a francesa Céline Sciamma, diretora de “Retrato de uma Jovem em Chamas”.
Diferente de companheiros como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol e Jacques Demy —com quem se casou—, Varda não era cinéfila quando começou a filmar. Suas referências estavam nas artes plásticas e na literatura. Se hoje escritores franceses como Annie Ernaux e Éduard Louis sacodem a escrita ao misturar memórias, pessoas e ficção, Varda, de certa forma, testava a autoficção no cinema havia mais de cinco décadas.
Na mais nova biografia da diretora, “A Complicated Passion”, lançada no ano passado, a autora Carrie Rickey investiga como a obra da cineasta se tornou uma extensão dos acontecimentos pessoais em sua vida. Exemplo disso é “Os Renegados”, vencedor do Leão de Ouro há 40 anos, láurea máxima do Festival de Veneza, na Itália.
O longa é baseado na história de uma jovem em situação de rua que Agnès Varda conheceu. Ao narrar suas desventuras, a cineasta retrata a inadequação feminina na sociedade contemporânea.
A mistura de realidade e ficção era um processo posterior à captura de um acontecimento, quase como a revelação de um filme fotográfico na câmara escura. O método criativo já estava em elaboração quando era fotógrafa, e seus cliques eternizavam acasos lapidados pela própria Varda.
Exemplo é “Fidel com Asas”, imagem presente na mostra, tirada durante uma viagem a Cuba. Nela, o então líder do país, Fidel Castro, aparece sentado entre duas pedras que parecem as asas de um anjo. Varda caminhava com ele numa praia quando viu a rocha em formato curioso e pediu que ele se posicionasse ali.
Sem querer, ela retratou de forma lúdica um momento histórico, quando, em meio à Revolução Cubana, Fidel era visto por muitos como um salvador. “Henri Cartier-Bresson procurava o instante decisivo. Agnès, os instantes não decisivos. Ela estava aberta ao que estava acontecendo”, diz João Fernandes, o curador.
A viagem a Cuba foi mais uma das muitas que Varda fez sozinha, conciliando a maternidade e a criação. “Ela viu uma Cuba que não existe mais. Havia esperança de um novo modo de viver. Ela sempre estava no lugar certo, no momento certo, e conseguia compreender o que estava acontecendo”, diz Rosalie Varda, lembrando a capacidade da mãe de não julgar. Do país caribenho, ela trouxe para a filha uma boneca.
Outra parada importante foi nos Estados Unidos, onde a cineasta conviveu com Andy Warhol, Jim Morrison e Catherine Deneuve. Lá, ela gravou um de seus documentários mais célebres, “Os Panteras Negras”, uma das poucas documentações em vídeo do grupo antirracista americano, também em cartaz no IMS e com fotos de bastidores expostas.
Com a chegada dos aparelhos digitais, ficou mais fácil para Varda filmar. Ela lançou “Os Catadores e Eu”, em 2000, antes de mergulhar novamente no seu arquivo fotográfico e em “Visages, Villages”. Dedicou seus últimos anos também às artes plásticas, e participou da Bienal de Veneza, em 2003, com a obra “Patatutopia”, na qual analisava o desperdício de comida. Ela foi ao evento, considerado o mais importante do mundo da arte, vestida de batata.
Mesmo tratando de temas sérios, seu senso de humor desarmava o espectador. “Me lembro que ela via beleza em tudo, em cada detalhe da vida. No restaurante, numa vila, no teto, no chão, na mesa. Era uma ginasta da mente”, afirma o artista francês JR numa mensagem de áudio à repórter. Famoso por suas instalações com fotografias gigantes, ele acompanhou Varda em “Visages, Villages”.
Uma das lembranças que Rosalie Varda tem da mãe é a de que, durante passeios ou viagens, ela costumava parar sem aviso. “Ela dizia ‘olhe, Rosalie’ e tomava seu tempo para observar”, diz. “E tempo para olhar é um luxo na nossa sociedade, na qual tudo é rápido e estamos sempre no celular.



