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Carolina Maria de Jesus: Filme recria favela em estúdio – 10/12/2025 – Ilustrada

Existe uma curiosa simbiose entre as trajetórias do cineasta Jeferson De, 57, e da escritora Carolina Maria de Jesus. No começo dos anos 2000, quando a autora de “Quarto de Despejo” tinha caído em quase completo esquecimento, o diretor resolveu fazer um curta-metragem sobre ela e sua obra.

“Carolina”, de 2003, viajou o Brasil e foi muito premiado, contribuindo para fazer a escritora negra, de pouco estudo e moradora de uma favela, ser um pouco mais conhecida por uma geração que mal tinha ouvido falar dela —ainda que, na década de 1960, ela tivesse sido um fenômeno cultural e de vendas.

Como que em uma retribuição cósmica, foi por sua vez a figura de Carolina que levou Jeferson à notoriedade e permitiu ao diretor iniciante trilhar uma carreira de destaque, que inclui o longa-metragem “Bróder“, de 2011, e a direção de novelas na Globo.

Agora, mais de duas décadas depois, novamente os dois se encontram artisticamente, desta vez em um longa —Jeferson leva às telas “Carolina – Quarto de Despejo”, que retoma trechos da história de vida da escritora em adaptação do diário em que narrava sua difícil rotina de fome, publicado em 1960.

O projeto não é originalmente de Jeferson De, mas ele foi logo convidado para dirigi-lo. “A vida dá voltas e retorna ao mesmo lugar”, diz o diretor, que rodou parte do longa em um estúdio no Rio de Janeiro, onde ergueram a rua de uma favela muito parecida com a do Canindé, que existiu em São Paulo até o começo dos anos 1960, quando foi demolida.

A comunidade cenográfica foi recriada em um pavilhão de 18 por 25 metros, com dois grandes painéis de LED ao fundo, concebida pelo diretor de arte Billy Castilho a partir de pesquisas e indicações da filha de Carolina, Vera Eunice, que tinha seis anos na época da escrita do livro, do qual é uma das personagens.

Na data em que a reportagem foi visitar o set, no fim de novembro, a própria Vera, hoje aos 72, gravava uma participação especial no longa. Após o fim de sua cena, toda a equipe se reuniu em uma grande roda diante da casa cenográfica de Carolina e a homenageou, com discursos, aplausos e lágrimas.

“O barraco está idêntico ao original”, disse Vera, emocionada diante de todos. “Por anos eu pensei ‘será que vou morrer, e esse filme sobre ela nunca vai sair?’ Agora vai, e fico feliz por ser um negro que esteja fazendo esse filme.”

Ao longo das filmagens, encerradas na semana passada, nomes como as escritoras Conceição Evaristo, Fernanda Felisberto e Eliana Alves Cruz também fizeram participações especiais, vivendo moradoras do Canindé que vão pedir ajuda a Carolina.

A maioria da equipe, entre técnicos e atores, é formada por negros. E alguns membros do elenco conhecem bem a realidade cotidiana em zonas periféricas, como os atores Liza del Dala e Jack Berraquero, que interpretam Nena e Alexandre, um casal do Canindé cuja rotina era marcada pela violência doméstica.

Dala viveu no morro do Fallet, na região central do Rio, e Berraquero já morou na Cidade de Deus, na zona sudoeste da cidade. Os dois acham que há diferenças entre as favelas da época e as de hoje, embora algumas coisas não mudem.

“As pessoas das comunidades de hoje têm um senso de cuidado que é muito positivo: todo mundo se conhece, e isso as aproxima. Mas, ao mesmo tempo em que tem esse fortalecimento, ainda vivem sérias questões sociais”, diz Dala.

“Na época, não havia nas comunidades tanta consciência de direitos humanos. Tanto é que o Alexandre tem o primeiro embate com a Carolina porque ela denuncia a violência dele, e ele acha um absurdo”, diz Berraquero. “Mas Carolina deu voz a essas mulheres silenciadas, e isso tem conexão com a realidade de hoje.”

A opção por recriar uma favela em estúdio não foi à toa —existe na essência do projeto um pensamento muito próximo ao que Jeferson De, ainda no começo da carreira, apregoava com seu “Dogma Feijoada“, conjunto de regras autoimpostas que defendia um cinema que recusasse estereótipos envolvendo os negros brasileiros, em sua representação enquanto eterno povo subjugado e sofredor.

Nesse sentido, adaptar “Quarto de Despejo” ao cinema parece um desafio e tanto porque a obra de Carolina não se furta de detalhar as mazelas clássicas da experiência negra —ainda que, nas entrelinhas, haja sempre traços de resiliência e orgulho racial. Evitar uma favela muito realista, assim como ser muito gráfico em acontecimentos violentos que ali ocorrem, foi um cuidado constante.

“Assumi que o filme é uma leitura nossa, da equipe criativa e minha enquanto diretor”, diz Jeferson. “Não estamos recriando a vida da Carolina, mas nos baseamos no livro dela, nessa leitura dela da própria vida, para nós fazermos a nossa leitura em pleno 2025, usando brechas de questões que ela acabou não apresentando de forma explícita no livro.”

O diretor diz que a ideia também é a de mostrar uma Carolina para além da imagem que se costuma ter sobre ela. “Na maioria das fotos, ela aparece posando, sob uma luz maravilhosa, segurando um livro. Eu apresentei um conceito para a equipe: imaginá-la um pouco antes de posar para essas fotos. Sem lenço na cabeça, antes de vestir a roupa que lhe indicaram para parecer pobre na foto. A gente quis conhecer outra Carolina, que não a já tantas vezes representada”, diz.

O papel da protagonista coube à atriz Maria Gal, que também é a idealizadora do projeto e uma das produtoras do filme. Desde sempre antenada a questões raciais, ela diz que ouviu falar da escritora pela primeira vez já tardiamente, mas logo planejou e participou de uma peça sobre ela com um grupo teatral da Universidade de São Paulo. Mas sentia falta de um longa-metragem sobre essa figura tão importante. Há 11 anos, decidiu ela própria se lançar no desafio, que só agora se concretiza.

“Carolina era uma visionária. Fazia mágica, transformava lixo em sustentabilidade. Você pensar que ela saiu de onde saiu e estudou como autodidata —eles tinham pouca comida, mas muitos livros, então ela se alimentava deles, vivia ao lado de um dicionário. Transformou a própria vida e a de outras pessoas”, diz Gal.

Ela acredita que o país tem uma espécie de dívida com a escritora, sobretudo por seu sucesso repentino vir seguido por um estranho processo de esquecimento, desde o fim dos anos 1960, que Gal acredita ter sido um projeto de natureza política.

“Não é só esquecimento, mas apagamento. Quantas Carolinas não devem existir por aí? É um apagamento da nossa própria história”, afirma.

“Ela foi invisibilizada. Depois do sucesso, vem a Ditadura, que passa a vê-la como comunista. Sofreu por essa questão política, por ser mulher, por ser pobre e por ser negra. Como milhares de pessoas negras sofrem até hoje. Foi um projeto de apagamento, e o racismo estrutural nada mais é do que isso: um apagamento dos negros, sobretudo os mais escuros. Quantas protagonistas negras retintas existem no audiovisual, por exemplo?”

Aliás, a preocupação em dar mais centralidade a esses negros de pele mais escura, como Carolina, tem sido cada vez maior na produção de Jeferson De. “Sinto uma necessidade de chegar perto da pele preta retinta. Eu gosto dessa investigação, ela me provoca”, ele diz.

E conclui: “As pessoas de pele mais escura têm muita dificuldade de chegar ao protagonismo. Nisso, a gente está deixando de fora uma parcela interessante de quem nós somos – comercialmente, inclusive”.

A nova parceria Jeferson-Carolina parece, desta vez, ter um compromisso simbiótico que vai além da divulgação do trabalho de ambos: em seu embate contra o colorismo, há de ajudar a todo um segmento da população a se reconhecer na tela.

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