Não dá para subestimar o impacto que teve na Europa a divulgação da nova Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos, pela Casa Branca, no final da semana passada, verberando a Europa por um suposto “declínio civilizacional”, projetando impedir a União Europeia de se desenvolver e praticamente admitindo que usaria as forças de extrema direita aliadas para dividir e subjugar o continente aos interesses americanos.
Foi um pouco como encontrar a carta de um ex-amigo e perceber: “Espera lá, afinal é isso que ele sempre achou de mim?”, só que com uma diferença fundamental: é que toda a gente leu a carta.
A gente, no fundo, sempre soube que tudo aquilo era verdade —agora só não dá para negar que toda a restante gente também sabe.
Isso representa um grande alívio e uma grande libertação para a Europa. Na opinião do cidadão comum, os EUA de Donald Trump são adversários, não aliados da Europa, e não vale muito a pena esperar por mudanças políticas que não dependam de nós.
Para os líderes europeus, a situação é mais difícil, tendo de fazer equilibrismo entre preparar a sua autonomia estratégica e não entrar em ruptura por iniciativa própria.
Mas não há volta atrás. Uma semana após Vladimir Putin ter ameaçado a Europa dizendo que a Rússia está “preparada para a guerra”, perante o silêncio dos EUA, foi agora a vez de o Kremlin reagir à divulgação do documento americano dizendo estar em “acordo” substancial com a estratégia de Trump para o mundo e, por maioria de razão, para o Velho Continente.
A Europa está entre o martelo e a bigorna. É uma situação aflitiva, mas ao menos acabaram as ilusões. Os europeus têm agora que estar unidos, mas não têm de estar sozinhos.
A outra grande novidade que no fundo todo o mundo já sabia, mas que agora é assumida às claras, é que os EUA querem regressar à Doutrina Monroe, com um “corolário Trump” que no fundo significa que Washington se arroga de novo um direito de pernada sobre aquilo que acontecer na América Latina, agora com menos disfarces do que no passado.
Pergunto-me se essas palavras foram recebidas em Brasília ou na Cidade do México com menos inquietude do que aquela com que as palavras sobre a Europa foram recebidas em Bruxelas, Berlim e Paris. (E, já agora, Tóquio, Seul ou Jacarta.)
Partindo do princípio de que toda a gente anotou a mensagem, há aqui uma oportunidade para uma diplomacia mais ágil e imaginativa, a começar por um renovar de iniciativa entre a Europa e a América Latina, para o que a ratificação expectável do acordo UE-Mercosul poderá ajudar.
Eu sei que a divisão convencional nos coloca em lados diferentes: a Europa no “Ocidente” e a América Latina no “Sul Global”. Mas suspeito que a emergência desta aliança cada vez mais explícita entre Trump e Putin acabe por fazer surgir outras clivagens —desde logo, entre aquelas que querem regressar a uma política de “esferas de influência” digna do século 19, e os países que defendem um sistema internacional baseado numa soberania igual para todos num sistema internacional de multilateralismo, encimado pela ONU. Aí cabemos nós, e cabe muita gente. Ainda há muito mundo que não é Trump nem Putin.
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