Antes mesmo de o podcast Praia dos Ossos ter sido lançado pelo streaming da Rádio Novelo, o diretor Andrucha Waddington comprou os direitos de filmar a obra. Praia dos ossos conta a história da socialite mineira Ângela Diniz, brutalmente assassinada em 1976 na praia da cidade de Búzios que dá nome ao podcast.
Mês passado foram lançados os cinco primeiros episódios de “Ângela Diniz: assassinada e condenada”, de Andrucha. Semana que vem a série se encerra com o duplo julgamento do caso. O primeiro, em 1979, libertou o assassino de Ângela, o namorado Doca Street. O segundo, em 1981, o puniu.
Quando comprou os direitos, talvez o diretor não esperasse um podcast tão impressionante. Lançado em 2020, com apresentação de Branca Vianna, Paula Scarpin na direção de criação e Flora Thomson-DeVeaux na pesquisa, Praia dos Ossos foi um sucesso imediato e ganhou o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog do ano.
Com sutileza, dramaticidade e complexidade, Praia dos Ossos seria um ótimo mapa para questões a serem abordadas na série. Mas o que se vê na tela é um raro apelo do que no podcast floresce a olhos vistos.
Marjorie Estiano interpreta a socialite Ângela Diniz e Emílio Dantas faz Doca Street, o feminicida. A atuação de Emílio chama a atenção. A de Marjorie parece esmaecida, talvez pelo roteiro de Elena Soárez, que simplifica demais a trajetória da socialite.
A série começa com a separação de Ângela de seu marido, com quem se casou aos 17 anos. Eles tiveram na realidade três filhos, mas na série escolheram condensar a maternidade em apenas uma filha. Como ainda não havia divórcio legal, Ângela, como muitas mulheres que quiseram o desquite, perdeu a guarda.
Mãe e filha travam luta heróica e companheira contra o pai. Uma simplificação boba. Perdeu-se a dramaticidade possível de se ter três diferentes formas de os filhos verem a mãe, o pai e a separação, em troca de uma visão pedagógica de uma filha-espelho de Ângela.
Há outros personagens criados pelo roteiro que também são esquemáticos demais. A começar por uma amiga da socialite que insiste que Ângela leia Simone de Beauvoir, como se o espectador tivesse que ser guiado à revelação feminista. Sutileza passa longe. Em outro trecho, inventaram que Ângela leva uma amiga para fazer aborto. Parecem querer encaixar a socialite de antigamente na pauta feminista tal qual ela se impõe hoje.
A Ângela de Marjorie Estiano soa doce e muito afável. Não é assim que se percebe a socialite no podcast. Em áudio ouve-se sobre uma mulher muito assertiva e senhora de si, mas que se meteu em polêmicas. Anos antes de ser morta, ela mesma se envolveu num estranho caso de assassinato de um caseiro negro de sua residência. No podcast são mostradas todas as variantes desse curioso caso, no qual até o racismo foi um dos ingredientes. Na tela o caso virou nada.
Filha das elites, Ângela rompeu apenas parcialmente com os preconceitos dos endinheirados de onde veio. O podcast não apaga as ambiguidades de Ângela. Pensar tais ambiguidades não é justificar sua morte, mas humanizar personagens, vê-los em suas integralidades, cheios de paradoxos e incongruências. Se o podcast busca e consegue humanizar Ângela Diniz, a série nem sequer tenta. “Ângela: assassinada e condenada” parece querer lustrar a imagem da socialite, transformando a mulher impetuosa e ousada em estátua de culto.
Verdade seja dita, “Ângela Diniz: assassinada e condenada” é melhor que a tentativa anterior, o fraco filme “Ângela” (2023), do diretor Hugo Prata. Mas ainda falta alguém para contar de forma convincente em vídeo a ruptura existencial da socialite. Ela foi criada para ser um exemplar honorável da sociedade mineira. Rompeu com os bons costumes e tornou-se um mito antes mesmo da morte, alguém que o colunista Ibrahim Sued, um de seus namorados, chamou de “A pantera de Minas”.
O podcast Praia dos Ossos conseguiu contar sua trajetória com a benevolência do olhar feminino, sem abandonar a criticidade e a investigação coerente. O audiovisual continua devendo obra à altura.
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