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Quem empurrou Gerson para a jaula dos leões fomos nós – 02/12/2025 – Joanna Moura

O vídeo mostra um homem andando em cima de grades de proteção. Em algum momento, ele se agarra no tronco de uma árvore e escorrega seu corpo da parte mais alta para a parte mais baixa, onde para por alguns momentos. O vídeo então corta para a imagem de uma leoa. A leoa que estava deitada num canto, percebe a presença do intruso, naquele que é seu habitat —nada natural, mas ainda assim, o único que ela conhece— e rapidamente se levanta. Num piscar de olhos, ela já está posicionada na base da árvore com as patas agarradas no tronco, e os olhos fitando o estranho que invade seu território.

A cena a seguir tem parte da tela pixelada. Filmada de cima, é possível ver os quadrados com as cores do corpo imóvel do rapaz, da bermuda azul e camiseta branca que ele usava, e do sangue vermelho, resultado do triste e fatal encontro entre o jovem e a leoa.

A cena me atravessou. Primeiro pela involuntariedade com que fui obrigada a consumi-la, sem aviso, sem preparo. Mas também pela vulgaridade típica das redes sociais, que embalam tristeza no embrulho da banalidade e servem ao público como entretenimento para ser consumido no café da manhã. Na legenda, nenhuma explicação, apenas a descrição do espetáculo mórbido: “jovem morre em jardim zoológico após invadir jaula de leoa.” Nenhuma menção a quem era o jovem, nem as razões que teriam o levaram a invadir aquele espaço, apenas a exposição de seu excêntrico fim e um convite irresistível às especulações.

“Bem feito! O que a pessoa tem na cabeça pra querer entrar ali?” dizia o primeiro de centenas de comentários.

A resposta à pergunta veio dois dias depois, quando o vídeo já tinha cumprido seu papel de se espalhar como um vírus, gerar engajamento, e consequentemente despertar o interesse da mídia em seguir explorando a história, desvendando mais detalhes, gerando mais cliques.

O jovem era Gerson, de 19 anos. O que Gerson tinha na cabeça era esquizofrenia. Filho de uma mãe que também diagnosticada com esquizofrenia, neto de uma avó que sofria com transtornos mentais, único de cinco irmãos a não ser adotado, Gerson foi encontrado pela Polícia Rodoviária Federal, vagando por uma rodovia quando tinha apenas dez anos.

Sem rede de apoio, sem acompanhamento adequado, Gerson passou a vida pulando de uma instituição para outra, do Conselho Tutelar para o Caps, do Caps para a polícia, da polícia para a penitenciária. Era para esta última que Gerson afirmava querer voltar, segundo ele o único lugar onde era cuidado, ouvido. Dias antes do trágico incidente que tomaria sua vida, Gerson havia quebrado a tela de um caixa eletrônico na tentativa de ser preso novamente. Segundo o delegado que recebeu o caso, Gerson havia dito que não aguentava mais ficar na rua, que não tinha ninguém.

No domingo, o destino do jovem que queria ser preso para ser cuidado, cruzou com o da leoa que estava presa contra sua vontade. E nada poderia ser mais didático de como falhamos como sociedade. Como fechamos os olhos para gente como Gerson, mas assistimos ao seu desfecho trágico como se fosse um espetáculo.

Uma pessoa com transtornos mentais não é responsabilidade de um único indivíduo, é responsabilidade de toda a sociedade. Nem Gerson, nem a leoa, entraram naquela jaula por vontade própria. Fomos nós que os empurramos lá pra dentro.


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