Israel tem tentado cultivar e armar rivais do Hamas na parte da Faixa de Gaza sob seu controle, em uma estratégia que atravessa décadas.
Homens palestinos armados e mascarados circulam abertamente, às vezes em caminhonetes ainda com adesivos em hebraico. Seus vídeos ostensivos exibem outros indícios: em um deles, fumam cigarros israelenses ao invés dos egípcios, mais baratos.
Os jovens costumam usar coletes, repletos de rádios e cartuchos extras para seus fuzis; outros aparecem nos vídeos publicados no Telegram usando coletes à prova de balas, tirando selfies em seus celulares, com pistolas Glock enfiadas em coldres de couro.
Drones israelenses observam do céu, com as imagens sendo transmitidas para uma pequena sala de controle, de acordo com um funcionário israelense que falou sob condição de anonimato. Os soldados de Israel não estão longe, assim como o que o líder de um grupo emergente de homens armados afirma ser um “coordenador” que aparece regularmente, trazendo armas, alimentos e veículos.
“Nada é proibido para nós”, disse Hussam al-Astal, 50, líder de um desses grupos, a autodenominada Força de Ataque Antiterrorismo.
Para provar onde estão suas lealdades, Astal filmou-se no mês passado queimando uma bandeira do Hamas. Ele disse ao Financial Times que esperava criar uma Gaza livre da facção com apoio de qualquer um lhe desse a mão— até mesmo Israel.
A chamada zona amarela foi nomeada pela cor da linha que dividiu Gaza em duas desde o cessar-fogo. Acredita-se que apenas alguns milhares de palestinos vivam ali, enquanto a vasta maioria dos mais de 2 milhões de pessoas do território está espremida na outra metade, sob controle do Hamas.
Nessa paisagem devastada e nebulosa, Israel busca repetir a tática usada há décadas de armar e fomentar milícias em território inimigo.
No Iraque de Saddam Hussein, o Mossad (serviço secreto israelense) ajudou a armar separatistas curdos. Na Síria, as forças armadas israelenses ajudaram a minoria drusa a criar uma zona tampão de fato ao longo da fronteira.
Mas, de forma mais infame, apoiou milícias cristãs no Líbano por quase duas décadas, apenas para ser forçado a recuar e retirar seus representantes em 2000.
O fato de essa tática ter fracassado no Líbano não impediu Israel de tentar novamente, disse Gonen Itzhak, ex-alto funcionário do Shin Bet, o serviço de inteligência interna de Israel, que recrutou informantes e colaboradores palestinos na Cisjordânia ocupada.
“Foi assim que Israel foi arrastado para as areias movediças do Líbano, e é assim que agora seremos arrastados para as areias movediças de Gaza”, disse ele. “Se nós, como israelenses, pensamos que podemos armar algumas facções em Gaza e que, no final, essas munições ou qualquer outro conhecimento militar não serão usados contra Israel, estamos sendo realmente muito estúpidos.”
Em Gaza, os bombardeios israelenses durante a guerra forçaram o Hamas a se esconder no subsolo, cedendo espaço para gangues criminosas, milícias islâmicas rivais e até fugitivos de prisões do Hamas. Esse foi um território fértil para o recrutamento da Unidade 504 da inteligência militar israelense, que há muito tempo tem a tarefa de arregimentar informantes árabes, de acordo com duas pessoas familiarizadas com a situação.
Foi a Unidade 504, ao lado do Shin Bet, que ajudou a dividir Beirute em setores rivais após a invasão israelense de 1982, colocando milícias cristãs contra militantes palestinos e a inteligência síria, e também ajudando a criar um aliado israelense, o Exército do Sul do Líbano.
Depois que os ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro de 2023 desencadearam a guerra em Gaza, os membros da unidade fluentes em árabe foram destacados ao lado das tropas de combate para interrogar os palestinos capturados, disse uma pessoa familiarizada com suas operações.
Mas um funcionário israelense informado sobre os planos disse que a missão entregue à diretoria de inteligência militar logo se tornou mais ampla: semear o caos em Gaza recrutando, e às vezes até armando, rivais em áreas onde o Hamas estava em retirada.
O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu reconheceu publicamente essa política secreta neste ano, dizendo ter autorizado “ativar clãs em Gaza que se opõem ao Hamas”.
Havia pouca esperança de que a missão produzisse um rival à altura do Hamas, um grupo terrorista amplo em termos políticos e militares —visto pelos palestinos como uma força de resistência contra a ocupação israelense—, com dezenas de milhares de membros e uma vasta rede subterrânea de túneis.
“Ainda havia uma oportunidade —o inimigo do Hamas pode ser seu amigo”, disse Igal Shiri, que estudou a recente ascensão das milícias de Gaza para o Meir Amit Intelligence Center. “Nem todos precisam fazer um acordo com Israel —mas Israel teve uma oportunidade de atingir seu inimigo.”
Amjad Iraqi, analista sênior do International Crisis Group para Israel/Palestina, disse: “É um quadro complexo e delicado. Existem alguns grupos que são conhecidos por colaborar com os israelenses e outros que são gangues criminosas ou clãs que estão tentando estabelecer um status e poder mais fortes para si mesmos no futuro de Gaza”.
A Unidade 504 e o Shin Bet parecem ter apoiado um conjunto de milícias —de força variável— agora quase todas concentradas na zona amarela, de acordo com ex-funcionários e funcionários atuais da inteligência israelense.
Estas vão desde as Forças Populares, uma milícia dirigida por Yasser Abu Shabab que controla uma faixa de terra perto da passagem fronteiriça de Rafah com o Egito, até a menor Força de Ataque Antiterrorista de Astal, que opera perto de Khan Yunis, outrora um bastião do Hamas.
A forma como operam permanece obscura. Astal afirmou ter uma relação com um coordenador de segurança israelense semelhante à que os funcionários de segurança palestinos na Cisjordânia têm há décadas com seus homólogos israelenses.
“Eu falo diretamente com o Exército —temos um coordenador— para trazer alimentos e se quisermos trazer 50 ou 100 pessoas”, disse ele.
Astal, um ex-funcionário da facção nacionalista secular Fatah, fugiu de Gaza quando o Hamas tomou a região em 2007, quando centenas de funcionários da Fatah foram transportados pelas Forças Armadas israelenses para a Cisjordânia.
Após seu retorno a Gaza anos depois, Astal disse ter sido preso como colaborador de Israel e só escapou durante o bombardeio israelense em dezembro de 2023, depois do início da guerra.
Astal, que culpa o Hamas por trazer a força destrutiva de Israel sobre Gaza, disse ter decidido lançar sua milícia depois que um ataque israelense contra uma célula do Hamas na área do acampamento da família matou sua filha no início deste ano. O FT não pôde verificar a afirmação.
Desde então, ele vem consolidando uma pequena área de controle a menos de um quilômetro de uma posição militar israelense, segundo autoridades israelenses. “Eles não nos incomodam”, disse.
As Forças de Defesa de Israel se recusaram a comentar suas relações com esses clãs, como os avaliaram e se planejam dissolvê-los e evacuá-los quando a guerra contra o Hamas terminar.
Esse nascente programa israelense enfrentou, sem sucesso, seu primeiro teste poucas horas após o cessar-fogo mediado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, no mês passado.
Quando o Hamas saiu de seus túneis, seus integrantes reafirmaram o domínio em seu lado da Linha Amarela com uma série de assassinatos em praça pública, classificando tanto criminosos quanto membros capturados de milícias rivais como colaboradores de Israel.
Sem julgamentos ou evidências, realizaram matanças a tiros nas principais praças da Cidade de Gaza. Uma das campanhas de represália mais sangrentas do Hamas foi contra membros do grande clã Doghmosh, um potencial desafiante dentro do território controlado pelo Hamas.
O grupo, que tem laços antigos com o Fatah, inclui desde criminosos até médicos, professores e até um pequeno grupo islamista considerado mais radical que o Hamas.
Quando o Hamas se escondeu durante a guerra, alguns membros lucraram roubando ajuda, revendendo-a e acumulando armas compradas de desertores, disse um funcionário israelense familiarizado com a questão.
Mas depois que Israel se retirou sob o cessar-fogo da Cidade de Gaza, onde o clã está baseado, o Hamas matou dezenas de membros Doghmosh enquanto caçava colaboradores, afirmou Nizar Doghmosh, chefe do conselho do clã.
Em entrevista, Nizar reconheceu que o Exército israelense teve contato com alguns membros do grupo, mas disse que o clã havia “recusado categoricamente” colaborar.
“O Hamas inicialmente disse: ‘Vamos pegar aqueles que colaboraram com a ocupação’, e dissemos que não tínhamos problema com isso”, disse Nizar. “Mas eles nos surpreenderam com um ataque maciço e feroz que se estendeu a todos os membros do grupo. O Hamas quer afirmar que é capaz de dominar Gaza.”
Do lado israelense da Linha Amarela, outro desafio se avizinha para Tel Aviv e seus possíveis aliados. O governo Trump considera a fronteira temporária, com o Exército israelense devendo se retirar à medida que o Hamas se desarma e entrega o controle de segurança a uma força internacional de estabilização ainda a ser formada.
Isso forçará Israel a decidir se levará os colaboradores consigo, como fez no passado, dando-lhes novas identidades e casas em cidades com grandes populações palestinas, como Ramle e Lod.
“É um palpite selvagem o que Israel fará” quando a Linha Amarela se mover, disse Gadi Hitman, professor da Universidade Ariel, em um assentamento na Cisjordânia ocupada. “Israel fará o máximo esforço para salvar aqueles que a ajudaram —não usamos nossos colegas e depois os descartamos. Mas garantir que conseguiremos resgatar todos eles? Ninguém pode.”



