“É um mistério para mim”, disse Clarice Lispector sobre “O Ovo e a Galinha”, conto que faz parte do livro “A Legião Estrangeira”, de 1964. Era, também, um dos trabalhos preferidos da escritora, como ela revelou em entrevista a Júlio Lerner em 1977, dez meses antes de morrer.
Em “Projeto Clarice”, espetáculo teatral dirigido por Cesar Ribeiro, a atriz Magali Biff transporta para a cena sua interpretação do texto que levava a própria autora a refletir.
“Quem lê ‘O Ovo e a Galinha’ tem que parar toda hora. O que ela está falando aqui? O que isso reverbera em mim?”, diz Magali. “Ele abre muitas portas de entendimento”.
Na compreensão da atriz, Clarice expande a reflexão do ovo para a galinha, e para a narradora, e chega a uma amplitude social em que aponta a falta de autonomia causada pela ausência de pensamentos críticos sobre a vida.
“Se você bobear, você é completamente manipulado. Você é completamente conduzido. Conduzido feito gado mesmo. Quando chamam de gado, tem realmente a ver, porque não tem o mínimo senso de reflexão”, diz sobre os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Com quatro atrizes no palco, “Projeto Clarice” aborda temas como a identidade, a subjetividade, a alteridade, a família e os afetos. Magali, Clara Carvalho, Mariana Muniz e Vera Zimmermann interpretam cinco contos da escritora, “Via Crucis”, “Menino a Bico de Pena”, “A Legião Estrangeira”, “Amor” e “O Ovo e a Galinha”.
A reflexão sobre sistemas de violência está na base da adaptação conduzida por Ribeiro —a peça sucede a outros trabalhos nos quais o tema aparece, como a recente “Trilogia Kafka”, com o grupo Garagem 21.
“Diante de uma sociedade que foi se tornando cada vez mais extremada à direita, entramos em projetos que refletem sobre esses sistemas de violência de diversos modos”, afirma o diretor.
Em “Projeto Clarice”, a busca foi a do olhar feminino diante da estrutura machista da sociedade e do modelo familiar padronizado —e opressor.
Ao escolher os contos de Clarice Lispector e o elenco de mulheres, Ribeiro buscou também uma encenação que se afasta da distopia e substitui a brutalidade pela poesia.
“A Clarice tem uma forma poética de investigar o cotidiano, o núcleo familiar, o ambiente doméstico. Mas, ao mesmo tempo, é o tempo inteiro uma epifania. Ela não trabalha a transformação, ela trabalha o momento que desperta a transformação”.
Cada conto retrata um aspecto diferente da vida de uma mulher. “Via Crucis” é uma parábola sobre o nascimento de Cristo; “Menino a Bico de Pena” fala da relação entre mãe e filho; “A Legião Estrangeira” aborda a formação da identidade a partir da relação entre uma mulher e uma menina; “Amor” coloca a mulher em seu núcleo familiar e “O Ovo e a Galinha” é uma espécie de síntese metafísica dessas situações.
“Um ponto em comum dos contos é a presença da alteridade, em que Clarice confronta suas personagens com o outro, seja no campo do literal ou do simbólico. O desconforto existencial é outro aspecto convergente. Há sempre uma sensação de estranhamento, uma fissura na realidade que provoca angústia”, analisa Vera Zimmerman.
Leitor de Clarice desde a adolescência, o diretor fez sozinho a adaptação dos contos para o espetáculo, mas afirma que, nos ensaios, manteve os ouvidos abertos para as atrizes opinarem sobre questões relacionadas ao universo feminino.
A Ana do conto “Amor”, interpretada por Clara Carvalho, por exemplo, sai de uma postura comportada de dona de casa e mãe de família para uma ruptura física violenta após entrar em contato com um homem cego que masca chicletes sem sofrimento.
“Ela sofre uma grande expansão sensorial e emocional quando experimenta uma piedade violenta, transformadora, que faz seus valores serem abalados e outra possibilidade de mundo se abrir”, diz a atriz.
No palco, as palavras da escritora se transformam por meio de uma composição física e emocional, a partir dos recursos do corpo em cena.
“As nossas contribuições ou sugestões acontecem no decorrer das apropriações, ou corporificações dos contos. Elas ocorrem pelo necessário trabalho de compreensão e estudos para concretização das cenas, já muito pensadas e elaboradas pelo diretor, diz Muniz. “Penso que trouxe, e trago, para as cenas de que participo, o fundamental aparato de vivências impressas no meu corpo, ao longo de 50 anos de trabalho quase ininterrupto”.



