Francês, italiano, espanhol, basco, português. Transitar entre as línguas, seja na vida, seja no cinema, não é um problema para o diretor Eugène Green, de 78 anos. A menos, é claro, que lhe perguntem sobre suas raízes nos Estados Unidos. “Não me agrada quando se diz que eu sou franco-bárbaro”, diz, às risadas, com seu fluente sotaque lusitano.
Bárbaro, no caso, é sinônimo de americano no vocabulário do autor. Nascido em Nova York, ele se naturalizou francês nos anos 1970, quando foi estudar literatura, línguas e história da arte em Paris. “Uma pessoa pode nascer num navio e não ser ‘naviano’. Para mim, [os Estados Unidos] é um lugar onde nasci, mas não uma identidade. Me sinto europeu, numa forte ligação com a França, pela língua, e com Portugal, numa relação mais misteriosa.”
É irônico, portanto, que seu último trabalho “A Árvore do Conhecimento”, tenha estreado, em setembro, numa mostra de cinema fantástico no Texas —onde, como se percebe lendo as resenhas da ocasião, ninguém fazia a menor ideia de quem fosse Eugène Green. “Era um festival de vampiros e lobisomens, foi um um pouco estranho, mas foi assim.”
Agora é a vez do longa aportar na Mostra de Cinema de São Paulo, onde os cinéfilos já estão mais habituados a sua obra —inclusive, à de inflexão lisboeta. Foi onde exibiu, em 2009, “A Religiosa Portuguesa”, seu primeiro longa rodado em Lisboa, e “Como Fernando Pessoa Salvou Portugal”, dez anos depois, um hilário curta em que o poeta faz um slogan tão esdrúxulo para vender coca-cola que o refrigerante provoca uma polêmica nacional e é exorcizado do país. A proposta de “A Árvore do Conhecimento” é tão humorística quanto.
O jovem Gaspar —papel de Rui Pedro Silva— foge de casa e vaga sozinho por Lisboa até ser raptado pelo feiticeiro nacionalista Ogre —Diogo Dória— e seu assistente, Leitão —João Arrais—, que enriquecem ao transformar turistas perdidos pela capital em animais. Depois os matam e vendem a carne para restaurantes “pega-turista”.
Até que, bêbado, num acesso de maldade, Ogre transforma todos os visitantes de uma grande praça da cidade em animais. Na fuga, uma burrinha e um cãozinho vêm atrás deles. Gaspar se afeiçoa aos bichos, os batiza de Helène e Federico e escapa do covil do mago para salvá-los.
A partir daí, Green vai tecendo tanto um manifesto contra o turismo de massas —”ele esconde a realidade visível”, diz o cineasta— como uma jornada de formação de Gaspar, enquanto ele foge por Portugal e conhece os segredos do país, em encontros com outras figuras míticas ou históricas.
“O turismo nesses moldes é um sintoma de uma civilização doente. Depois da crise econômica de 2008, Portugal era muito pobre e só tinha o próprio corpo para ganhar dinheiro”, afirma. “A destruição de tudo o que era particular era já comum em outras cidades da Europa, mas em Lisboa demorou mais. Os portugueses têm razão para estarem zangados, mas não se pode responder com violência.”
“Green”, verde em inglês, significa esperança, como lembra um guia turístico no meio do filme.
Por ironia, a obra de Green não poupa Donald Trump, a cultura e os turistas americanos do ridículo. “Tudo isso é resultado de mais de 50 anos de colonização mental pelos bárbaros”, afirma. “O homem existe pela palavra, cada língua é um fragmento do divino. Mas os bárbaros não têm língua, só um meio de comunicação.”
Para fugir das placas em inglês que tomam conta de Lisboa, o cineasta põe o protagonista em contato com seres como o espírito de um milharal num espigueiro abandonado, um monstro meio serpente, meio mulher, além da própria dona Maria 1ª, a Louca. Mãe de dom João 6º, seu espírito aparece aprisionado num palácio pelo seu ódio contra o controverso Marquês de Pombal e as reformas que fez na capital.
“A espiritualidade é, para mim, muito importante, e os mitos, contos, lendas são capazes de exprimir isso no mundo atual”, diz o cineasta. “Talvez, com a idade, eu pense mais no passado”, afirma.
Seus últimos dois trabalhos também lidam com esse universo em outros aspectos da cultura europeia —”Atarrabi & Mikelats”, sobre uma lenda basca, e “O Muro dos Mortos”, um conto a partir de um monumento a soldados da Primeira Guerra Mundial.
“A verdade espiritual é uma coisa que não tem nome nem forma. Por isso precisamos dessas chaves para este mistério. As religiões não são as únicas formas de atingir isso, mas para muitas pessoas, elas são úteis.”
Com uma mise-en-scène particular, diálogos vagarosos e enquadramentos que remetem a mestres como Robert Bresson e Yasujiro Ozu, Green diz, por fim, que tem prazer em trabalhar com atores portugueses. “Eles não partem de uma representação psicológica”, diz. “É diferente da França, onde acham que temas graves não podem ser espirituosos. Para mim, não. O cômico vem naturalmente.”