A Kamehameha Schools, fundada com um legado de uma princesa havaiana em 1887, está entre as instituições de ensino privadas mais prestigiadas do Havaí. Sua missão central, servir aos nativos havaianos, permaneceu intacta por décadas.
Essa visão foi concretizada há muito tempo por meio de sua política de admissão. Embora qualquer pessoa possa se inscrever para frequentar as escolas de ensino fundamental e médio da Kamehameha, é dada preferência aos alunos que possam comprovar alguma ascendência havaiana.
Como resultado, quase todos os alunos que frequentam a escola são havaianos nativos.
Agora, o Students for Fair Admissions, grupo que entrou com uma ação judicial bem-sucedida para acabar com a ação afirmativa nas admissões em faculdades, declarou a Kamehameha como seu novo alvo. Na segunda-feira (20), o grupo entrou com uma ação em um tribunal dos Estados Unidos em Honolulu para contestar a política de admissão da Kamehameha. A ação argumenta que a política da instituição viola uma lei federal de direitos civis que proíbe a discriminação em contratos —neste caso, contratos de admissão em uma escola particular.
Se for bem-sucedida, a ação judicial poderá reformular a identidade e a missão da escola —e possivelmente alimentar ainda mais desafios futuros contra programas com consciência racial em todo o país.
“Chegou a hora de acabar com a discriminação baseada na ascendência”, afirma a ação judicial. “Nada relacionado à formação de futuros líderes ou à preservação da cultura única do Havaí exige que a Kamehameha impeça seus alunos de aprender ao lado de crianças de diferentes ascendências.”
Em uma entrevista por telefone antes de a ação ser movida, Edward Blum, presidente da Students for Fair Admissions, disse que seu grupo apoiava a missão da Kamehameha de oferecer uma educação rica em língua, cultura e gestão havaianas. Mas, segundo ele, essa educação “deve ser ministrada a todos os havaianos, e não apenas àqueles com uma origem genética específica”.
A escola disse que está preparada para o desafio. “Estamos decididos a defender vigorosamente nossa política de admissão”, afirmou em comunicado na segunda-feira. “Os fatos e a lei estão do nosso lado, e estamos confiantes de que prevaleceremos.”
Muitos havaianos nativos veem as políticas de admissão da Kamehameha de maneira bem diferente de Blum —não como uma questão racial, mas como uma questão de história e soberania.
O processo, dizem eles, é um ataque ao legado da princesa Bernice Pauahi Bishop e mais uma tentativa de roubar os recursos dedicados à melhoria do povo havaiano. E eles ressaltam que a escola, com um fundo patrimonial de US$ 15 bilhões (R$ 80,8 bilhões), maior do que algumas universidades da Ivy League, não recebe financiamento federal.
“Não é uma questão de negação de oportunidades; é uma questão de soberania sobre nossos próprios recursos”, disse Jon Osorio, reitor da Escola de Conhecimento Havaiano Hawaiʻinuiākea da Universidade do Havaí e ex-aluno da Kamehameha.
A Kamehameha é tão distinta em sua história, política de admissão e estrutura de financiamento que qualquer decisão judicial que invalide sua política de admissão provavelmente não afetará diretamente outras escolas, dizem alguns especialistas jurídicos.
Mas o desafio reflete uma mudança mais ampla na visão de grande parte do país sobre as minorias raciais, especialmente à medida que o governo de Donald Trump tenta sufocar a imigração e desmantelar programas de diversidade na vida pública. Qualquer ação bem-sucedida poderia encorajar ativistas conservadores a contestar outros programas privados baseados em raça, como grupos de afinidade de funcionários, bem como programas federais como aqueles voltados para nativos americanos.
“Estamos no meio do que eu consideraria uma era de revanchismo racial”, disse Justin Driver, professor de direito da Universidade de Yale e autor de “The Fall of Affirmative Action” (A Queda da Ação Afirmativa).
A fundadora da Kamehameha, Pauahi, foi a última descendente direta de Kamehameha 1º, o rei do século 18 que unificou as ilhas havaianas. Quando ela morreu em 1884, seu testamento legou cerca de 375 mil acres para a criação das escolas.
Na época, o Havaí era um reino independente, mas as doenças vindas do Ocidente estavam devastando sua população. Alguns anos depois, a monarquia foi derrubada por empresários ocidentais e, por gerações, a cultura e a língua havaianas foram ativamente suprimidas.
Hoje, os havaianos nativos ainda enfrentam disparidades significativas em termos de saúde, economia e educação. Muitos se mudaram para o continente devido ao aumento do custo de vida. Dados do censo divulgados em 2024 mostraram que, pela primeira vez, mais havaianos nativos viviam fora do Havaí do que no estado.
As preocupações com um processo judicial vinham crescendo no Havaí desde que o Students for Fair Admissions criou um site no mês passado buscando demandantes para contestar a política de admissão da Kamehameha. Uma petição reuniu mais de 30 mil assinaturas.
Políticos, incluindo alguns legisladores republicanos do estado, também criticaram o grupo. “No nível universitário, concordamos com o que eles estão buscando”, disse Brenton Awa, senador estadual republicano, em entrevista antes da ação judicial ser movida. “Mas estamos falando sobre o testamento de uma princesa, e esse testamento foi feito para restaurar algo que havia sido tirado dos havaianos nativos.”
Mesmo entre os havaianos nativos, a admissão na Kamehameha é competitiva. A escola, com 5.400 alunos em seus campi, aceita apenas 1 em cada 5 candidatos do ensino médio. Mais de 60% de seus alunos recebem ajuda financeira ou vêm de “circunstâncias de orfandade ou indigência”, de acordo com a escola.
Michelle Kamali’i-Ligsay, filha de um gerente de loja de varejo e de uma auxiliar de escola pública, frequentou a escola no final dos anos 1990. Ela recebeu oportunidades bolsas de estudo e redes de ex-alunos —indisponíveis em sua escola pública. Mas, mais importante, disse ela, quando se formou, era quase fluente em havaiano —uma conquista rara em uma época em que as aulas de língua havaiana não eram amplamente disponíveis.
Agora diretora do programa de ensino fundamental da Kamehameha em Maui, ela acredita pessoalmente que esses benefícios devem ser preservados para seu povo. “Dar essas oportunidades a outras pessoas”, disse ela, “vai diminuir essa oportunidade” para os havaianos nativos.
Os candidatos que afirmam ser nativos havaianos devem passar por um rigoroso processo de verificação para comprovar sua ascendência. Mesmo assim, o corpo discente da Kamehameha —assim como o Havaí em geral— é notavelmente diversificado em termos raciais. Embora a escola não divulgue números demográficos oficiais, uma análise do IRS descobriu que, em 1998, 78% dos alunos eram parcialmente caucasianos; 74% eram parcialmente chineses; 28% eram parcialmente japoneses; e 23% eram de outras ascendências, incluindo afro-americanos, árabes, brasileiros, indianos, nativos do Alasca e nativos americanos. O que une os alunos é sua ascendência havaiana, por mais distante que seja.
A Kamehameha tentou se proteger de desafios legais. No início dos anos 2000, ela cortou todos os laços restantes com programas apoiados pelo governo federal. Ainda há preocupações de que a Kamehameha possa perder sua isenção fiscal, o que aconteceu com a Bob Jones University na década de 1970 por causa de sua proibição de namoro inter-racial.
A escola também matriculou pelo menos alguns alunos não nativos havaianos, apesar dos protestos. No entanto, não está claro se os não nativos havaianos são aceitos regularmente. Quando solicitado a esclarecer, Sterling Wong, porta-voz da Kamehameha, reiterou a política preferencial da escola.
Em sua reclamação, a Students for Fair Admissions disse que representa duas famílias havaianas não nativas anônimas no Havaí —que afirmam que se inscreveriam na Kamehameha se a escola não restringisse a admissão.
Antes da decisão da Suprema Corte de 2023 proibindo a ação afirmativa, os tribunais inferiores mantiveram a política de admissão da Kamehameha. Em 2006, um tribunal federal de apelações decidiu que a escola poderia manter sua política preferencial devido ao que considerou fatores únicos, incluindo a história do Havaí, a situação dos havaianos nativos e a missão distintamente corretiva da escola.
Os advogados da Kamehameha também argumentaram que os nativos havaianos —como um povo indígena com uma relação política com o governo dos EUA semelhante à dos nativos americanos— constituíam uma classificação política, não apenas racial.
Na denúncia, a Students for Fair Admissions argumenta que a política da escola não é um plano corretivo válido porque não tenta remediar um caso específico de discriminação ilegal no passado. O grupo também argumenta que a política é inconstitucional porque a Kamehameha não sugeriu um ponto final lógico, nem demonstrou uma ligação direta entre sua preferência racial e melhores resultados educacionais para os havaianos nativos como um todo.
O processo pode levar anos para ser julgado pelos tribunais e ainda assim não chegar à Suprema Corte.