É curioso como, de repente, a esquerda passou a repetir em coro que polarização não existe, que é só mais um espantalho usado por quem quer tratar todas as forças políticas como farinha do mesmo saco. Na semana passada, minha coluna registrou um número curioso de comentários nesse sentido. Aproveito para dialogar com essas objeções.
Alguém lembrou que “sempre houve situação e oposição; logo, não há polarização”. Ora, isso é confusão de categorias. Competição é o que esperamos de uma democracia: programas diferentes, coalizões que mudam e disputa pela opinião pública. Polarização, no sentido que interessa hoje, é outra coisa: o centro fica deserto e somem os moderados, enquanto crescem a antipatia organizada ao campo rival e as lealdades identitárias que reclassificam fatos e pessoas. Em eleições, trata-se menos de escolher quem me convence e mais de bloquear quem detesto. Tudo vira um plebiscito moral, e os adversários são agora inimigos deploráveis, que não deveriam caber em uma democracia ou em um país decente.
Convém lembrar que há uma bibliografia vasta e consistente que mede e compara polarização há décadas. O campo é hoje tão fecundo que já se dividiu em linhas de pesquisa relativamente consolidadas —polarização de temas (distâncias programáticas), polarização afetiva (antipatia entre campos), assimetria (quem polariza mais e contra quem), mecanismos psicológicos (identidade social, raiva, estereotipias) e despolarização (o que reduz a animosidade e melhora a convivência política). Não é um modismo jornalístico: é um corpo de evidências robusto, replicado em distintos países, e medido com vários métodos.
Alguns leitores disseram que, se quase sempre terminamos com dois candidatos, falar em polarização é “primarismo”. Não é. Dois finalistas não produzem sozinhos um país em que metade gostaria de se livrar da outra. Isso decorre de uma identificação política que preza pela forte coesão grupal e, ainda mais, pela hostilidade ao “outro lado” (“nós, os decentes” × “eles, os perigosos”). A polarização afetiva não depende do número de nomes na urna, mas de como os eleitores passam a detestar quem se opõe a eles.
Disseram que a clivagem “capital × trabalho” sempre existiu, então “polarização é de sempre”. De novo, misturam divergência com animosidade. O país pode divergir duramente sobre gasto social, reforma tributária ou prioridades de investimento sem cair na mecânica de desumanizar o rival. O que mudou nos últimos anos foi a entrada, ao lado do eixo econômico, de um eixo moral-cultural que moraliza o conflito: passa-se a disputar virtude, não só política pública. E as identidades políticas se estabelecem por aversão: se eles gostam de vacina, o certo é ser contra.
Quando isso acontece, cresce a tentação de carimbar o outro como “antidemocrático por essência” e declarar que só um lado representa o campo democrático ou decente. Ora, juízo normativo (quem é o mais virtuoso) não elimina fato descritivo (há polarização afetiva). Podemos condenar projetos iliberais sem fingir que a sociedade não está afetivamente partida.
Também apareceu a defesa messiânica: “Lula é uma lenda; portanto, não há polarização”. Culto a líder é expressão do problema, não sua solução. O personalismo simplifica a política em termos de fidelidade —o que aumenta a afetividade no próprio grupo, reduz a tolerância e incentiva a demonização do rival.
“Só um lado é extremo; logo, não existe polarização”, alegam. Ainda que fosse verdadeira, a frase confunde assimetria com inexistência. A polarização pode ser assimétrica —um campo pode ser mais radical, mais conspiratório, mais tentado pela violência. Ainda assim, existe polarização quando ninguém constrói pontes, quando se planeja e se espera livrar-se do lado político detestável e quando as identidades se estabelecem por repulsa ao outro.
Dizer que “apenas um lado é extremo” pode ser uma avaliação moral correta em certos casos; mas não dissipa o ódio recíproco, não permite projetos comuns nem conserta a política do veto. Se a retórica do debate público seguir moralizando a disputa e se a militância seguir marcando moralmente as fronteiras (“os nossos são gente; os deles, ameaça”), continuaremos em guerra permanente, com a pauta pública subordinada ao combate simbólico.
O diagnóstico honesto ajuda. A disputa programática é normal e desejável, mas a polarização afetiva é um padrão emocional e cognitivo que empobrece a conversa pública. Negar o fenômeno não o reduz —apenas nos desarma para enfrentá-lo.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.