No ano que vem, celebra-se o aniversário de 40 anos de morte do francês Jean Genet, um dos autores mais subversivos do século 20. A Todavia acaba de publicar uma nova tradução de “Nossa Senhora das Flores”. A Ercolano também está lançando a peça “Heliogábalo”, perdida por décadas e só publicada na França pela primeira vez em 2024.
Genet nasceu em Paris em 1910 e morreu na mesma cidade em 1986. Criado em um orfanato e desertor do Exército, vagabundeou pela Europa durante os anos 1930 e foi preso diversas vezes por pequenos furtos. Escreveu suas primeiras obras na prisão, de onde saiu celebrado por intelectuais de peso como Jean-Paul Sartre e Jean Cocteau.
Em sua estreia literária, “Nossa Senhora das Flores”, Genet compartilha o material masturbatório que colecionou sobre seus amigos e amantes presidiários, como a travesti Divina, o cafetão Gostoso-de-Pé-Pequeno e o malandro homicida Nossa Senhora das Flores, que dá título ao livro. A obra caiu como uma bomba em uma Europa que ainda enviava pessoas homossexuais para campos de concentração. Sartre celebrou o livro como “um épico da masturbação”.
Esse tipo de obra, porém, só funciona se autor e público compartilham do mesmo afã inversor. Mas 80 anos não passam impunemente. Como recriar ou apreciar o impacto transgressor de Genet em nosso mundo ao mesmo tempo mais e menos careta?
O prazer da transgressão é diretamente proporcional ao rigor da repressão. O ato de pular um muro gigantesco que nos oprime é significativo —e tesudo— justamente em função do tamanho e da solidez do muro. Mas se o muro bate no joelho, o mérito de saltá-lo é quase nenhum.
Muitos consideram Genet como o precursor da autoficção de Édouard Louis e Annie Ernaux, por exemplo. Mas enquanto esses autores narram suas lutas para serem aceitos, a obra de Genet foi sanitizada e aburguesada à sua revelia. Ele esfregou seu estilo de vida marginal na cara da sociedade, nunca quis ter nem casa fixa e passou boa parte de seus últimos anos em acampamentos palestinos.
Hoje, quando a homossexualidade já perdeu muito de seu estigma, o que chama atenção em “Nossa Senhora das Flores” é o falocentrismo. O feminino, quando aparece, é simulacro: tudo gira em torno do pênis. A versão original incluía até as medidas de todos os pênis citados.
Escrever material masturbatório é válido e divertido, mas só vai curtir quem compartilha as taras do autor. Separados do seu contexto original, os livros mais falocentrados de Genet, como “Nossa Senhora das Flores”, são hoje os mais flácidos e brochantes.
O teatro de Genet, entretanto, não perdeu nada de seu poder transgressor. Revolucionou os palcos de meados do século 20 e continua sendo encenado por todo o mundo.
Como dramaturgo, ele levanta um pouco os olhos do próprio pênis e começa a abordar temas mais políticos, como colonialismo e opressão. Suas quatro peças principais — “As Criadas“, “O Balcão“, “Os Negros” e “Os Biombos“— estão fora de catálogo há anos. A Ercolano planeja reeditar as duas primeiras.
“Heliogábalo” dramatiza as últimas horas do imperador romano que reinou de 218 a 222. Vaidoso e afetado, esteta e traidor, covarde e homossexual, ele é o típico herói genetiano.
Todo o poder subversivo de “Nossa Senhora das Flores” também está em “Heliogábalo”, assim como o repertório de temas favoritos de Genet: os crimes e as conspirações, o sexo, a violência e a traição. Mas tudo melhor trabalhado, repleto de maravilhosas frases de efeito e servindo a um enredo que vai além da mera transgressão pela transgressão.
Fica a sugestão às editoras brasileiras: não existe melhor momento para reeditar sua obra-prima, “Um Cativo Apaixonado“, reunindo suas experiências entre os Panteras Negras, nos Estados Unidos, e nos campos de refugiados palestinos.
É seu trabalho mais humano, mais engajado, menos autocentrado, a obra que não só solidifica seus interesses pelos pobres e explorados do mundo, como é a primeira em que efetivamente enxerga e escreve sobre mulheres. Em tempos de guerra em Gaza, está cada vez mais relevante.