Julgar “As Estações” pelos seus primeiros minutos é um erro que muitos maratonistas da Mostra de Cinema de São Paulo podem cometer. Tudo começa com um registro calmo do interior de Portugal, com seus cabritinhos, pedras e árvores. Crianças conhecem pinturas rupestres numa caverna. Trabalhadores entoam antigas canções contra o salazarismo.
Até que, de repente, em off, uma voz em alemão. Ela lê uma carta do casal de arqueólogos Georg e Vera Leisner, que, em meio à Segunda Guerra, pesquisava aquelas rochas até então inóspitas ao espectador —são antas, câmaras funerárias megalíticas capazes de contar muitas histórias em seus silêncios.
“Essas pedras marcam o fim do nomadismo, uma nova relação com o território, o momento em que o homem começa a dominar a natureza. É o início da ideia de propriedade, das guerras e das sociedades tal como as conhecemos”, diz Maureen Fazendeiro, que estreia seu primeiro longa na direção solo.
Francesa radicada em Lisboa, Fazendeiro é um nome habitual para quem acompanha o trabalho de Miguel Gomes, seu companheiro, e da produtora O Som e a Fúria. Dirigiram juntos “Diários de Otsoga”, rodado durante a pandemia e lançado em 2021, além de ela ter sido uma das roteiristas de “Grand Tour”, longa pelo qual Gomes foi premiado no Festival de Cannes do ano passado. Todos trabalhos em que documentário e ficção se comunicam —um interesse de longa data para Fazendeiro.
“Tinha o desejo de fazer um filme que pudesse se metamorfosear não só com o passar das estações, mas também na maneira de filmar, de pensar. O real é feito tanto de visível como de invisível, tanto da luz e dos relevos da terra como dos acontecimentos e memórias. Queria a história desse território, mas também a relação de seus habitantes com ele”, afirma a autora, que iniciou o projeto há sete anos.
Ela e sua equipe partiram, na ocasião, no encalço dos Leisner pela península ibérica. A maior concentração das antas era, justamente, no Alentejo, no sudeste português, por onde a diretora viajou ao longo de um ano, muitas vezes acompanhada de trabalhadores da região. Foi quando, a partir da história oral daquelas pessoas, viu mais uma forma de escavar aquele lugar —entrando no terreno do fantástico.
No princípio, vemos um senhor erguendo uma pequena cabana de palha, ainda verde, para descansar. Lá pela metade do filme, já seca e amarelada, essa tenda é usada como abrigo de um pastor medieval. Ele explora a mata até se deparar, num rochedo, com um carneirinho coberto de ouro —na verdade, uma princesa moura amaldiçoada, que o rapaz visitará durante três noites.
Noutra passagem, ouvimos a lenda do Charro, um vagabundo que teria sido capturado e morto após criticar um rei. “Essa história pareceu-me contar algo muito forte, porque embora as pessoas dissessem que não se recordam quando aconteceu, talvez há 2.000 anos, ecoa com a ditadura salazarista e o medo de ser preso e torturado por contestar o regime”, diz a cineasta.
Com o tempo e o trabalho ao lado do montador Telmo Churro, Fazendeiro teve a ideia de costurar todo o material em ciclos temporais que se cruzam durante toda a narrativa.
“O filme abre com pedras que têm inscrições gravadas, linhas curvas, buracos redondos, e fecha com um sobreiro gigante onde foi pintado no tronco a data em que a cortiça lhe foi tirada. Eu queria prolongar esses gestos e inscrever na película todos os fragmentos que juntei”, diz Fazendeiro, para quem o Alentejo, até então, era uma região desconhecida.
Remetendo à história de resistência desse lugar e ao caráter arqueológico do filme, já mais perto do final, a autora dá a ver uma de suas descobertas. “Durante a pesquisa, conheci Manuel Canelas, cinéfilo que tinha ido estudar em Lisboa e voltou para a sua aldeia quando se deu a Revolução dos Cravos [em abril de 1974]. Com uma câmera emprestada, ele filmou a cooperativa, as ruas da aldeia, seus amigos —mas nunca tinha revelado o material.”
“Descobrimos essas imagens espantosas, lindas, e muito comoventes, que tinham esperado 45 anos.” Um pouco craqueladas pelo tempo, vemos no rosto dos lavradores uma euforia que duraria pouco para a história, mas foi eternizada naqueles instantes. “É um arquivo raro, precioso. Naquele dia percebi o que podem sentir os arqueólogos quando encontram um fragmento debaixo da terra.”