Paulo Markun era um jovem jornalista de 22 anos quando conheceu Vladimir Herzog, então 15 anos mais velho. Era 1974, e Vlado trabalhava na revista Visão, para a qual Markun —na época repórter da Folha– fez alguns trabalhos como freelancer.
A relação entre os dois se estreitou naquele ano e no ano seguinte, a ponto de Herzog convidar Markun para ser chefe de reportagem da TV Cultura quando assumiu a direção de jornalismo da emissora, em setembro de 1975.
Meses antes, quando Vlado começava a escrever o roteiro do filme “Doramundo”, de João Batista de Andrade, Markun emprestou ao amigo o apartamento de sua família em Guarujá (SP) para lhe garantir a paz exigida pelo trabalho.
Ambos também militavam no PCB (Partido Comunista Brasileiro), e Markun foi preso no DOI-Codi dias antes de Herzog, sobre quem foi forçado a falar, mediante tortura e depois num manuscrito —em ambos os casos, deu informações públicas sobre o colega e procurou evitar dizer algo que pudesse complicá-lo.
Vlado foi assassinado no mesmo dia em que foi preso, 25 de outubro de 1975, após sessões de tortura. A ditadura inventou que havia se suicidado, farsa que foi depois desmascarada.
Markun se ocupou da história de Herzog na biografia “Meu Amigo Vlado” (Objetiva, 2005) e, antes, no livro “Vlado – Retrato de um homem e de uma época” (Brasiliense, 1985), do qual foi organizador.
Agora, junto com o filho Pedro Markun, ativista digital que trabalha com inteligência artificial, o jornalista desenvolveu uma ferramenta que recriou a voz de Herzog e foi alimentada por livros, cartas, reportagens e artigos diversos sobre a vida e a trajetória profissional do personagem.
A Folha testou em primeira mão a ferramenta com o avatar de Herzog. No próximo dia 30, Markun repetirá a experiência de forma mais abrangente, num palco, em que ele, os também jornalistas Caco Barcellos (TV Globo) e Mariana Castro (Fast Company) e a plateia farão perguntas ao chatbot, num evento do Sesc.
No dia seguinte, pelo mesmo evento, Markun participa do debate “IA, ética e a construção da memória histórica”, com os professores da USP Eugênio Bucci e Leonardo Foletto.
“A gente entrou na TV Cultura em 3 de setembro [de 1975] e no dia seguinte começou uma campanha sistemática de que os comunistas tinham tomado conta da emissora, promovida por Wadih Helu, José Maria Marin [políticos aliados à ditadura] e Cláudio Marques [jornalista]. Eram notinhas em jornal e tal, numa onda que ia culminar na prisão do Vlado, mas que tinha a ver com as prisões de jornalistas militantes do Partido Comunista que aconteceram naquele período”, recorda Markun.
Para ele, a comoção que se seguiu ao assassinato do amigo, com ações que derrubaram a farsa do suicídio, foi crucial para o começo do afrouxamento da ditadura.
“Já tínhamos alguma liberdade de imprensa, algum respiro. Contribuiu o fato de o Vlado ser um jornalista respeitado. E houve a conjunção de grupos religiosos [liderados pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright] e a mobilização de jornalistas, com o grande papel do presidente do sindicato, Audálio Dantas. A chamada tempestade perfeita, no bom sentido. O Vlado virou mártir contra a sua vontade, mas virou”, analisa Markun.
O biógrafo lembra do amigo como alguém ao mesmo tempo desafetado e muito profissional. “Tem jornalistas que se acham o sal da terra. Ele não se levava muito a sério, embora levasse muito a sério o que fazia. Era muito rigoroso, preocupado com a precisão jornalística, e tinha compreensão do processo que estávamos vivendo.”
Politicamente, observa Markun, Vlado era um militante de esquerda “crítico do stalinismo e envolvido na ação jornalística que contribuísse politicamente dentro das circunstâncias, que é o que fez ele aceitar a direção de jornalismo da TV Cultura na gestão do Paulo Egydio, um governo da ditadura. Ele enxergava aquilo como uma possibilidade de ação”.
Markun lembra de um relato de Clarice Herzog, viúva de Vlado, que certa vez perguntou ao marido por que ele havia entrado no Partido Comunista. “Ele falou: porque eu, como judeu, não posso ser membro da Igreja Católica. E só tem duas organizações no Brasil hoje que atuam eficientemente para tentar derrotar a ditadura, a Igreja e o Partido Comunista, então eu tô no Partido Comunista.”
“E, mesmo no partido, ele nunca foi um dogmático, um militante muito entusiasmado. Ele tinha preocupações com o cinema, com a literatura, com o jornalismo, mas era um homem engajado.”
E como Markun acha que Herzog encararia o mundo atual? “Penso que hoje, com mais de 80 anos, ele estaria ainda disposto a fazer coisas, achar que é possível que o mundo melhore, mas eu diria que provavelmente estaria desanimado diante de certos registros da realidade, não só do jornalismo, mas da política mundial.”