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Mauricio de Sousa faz 90 longe dos gibis e ganha filme – 17/10/2025 – Ilustrada

Mauricio de Sousa não escreveu o filme sobre sua vida, que estreia na próxima quinta (23), mas ajudou a fazer o esboço. Na pandemia, sem poder sair de casa, passava horas no telefone contando causos antigos ao roteirista e aos atores. Falou da vez em que se perdeu navegando uma balsa, do joelho que tremia de nervoso quando cantava nos shows de talentos, da avó que o fez se apaixonar pelas cores do cinema. “Lembrei mais uma história”, dizia ele a cada novo telefonema.

Foi munido desse acervo que Mauricio traçou a jornada que o transformou no quadrinista mais importante do Brasil. Prestes a completar 90 anos, o criador da “Turma da Mônica” ganha agora a cinebiografia “Mauricio de Sousa: O Filme”, que chega quatro dias antes de ele assoprar as velinhas.

Não haverá uma megafesta de aniversário. Mauricio está recluso e deve celebrar em casa, só com a família. Parou de dar entrevistas e cancelou de última hora, nesta quarta (15), uma rara aparição pública — iria à cerimônia de abertura da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo para receber uma homenagem. O filho, Mauro, que o interpreta nos cinemas, o substituiu e disse que o pai estava em casa, quietinho.

É uma ausência notável. Nas últimas décadas, Mauricio arrastou multidões em feiras do livro pelo Brasil afora. Mas agora está afastado dos fãs, dos gibis e da empresa que fundou, a MSP Estúdios. Passa a maior parte do tempo num apartamento em São Paulo ou no sítio da família, em Caçapava, no interior paulista, onde gosta de almoçar sushi e de ver os netos brincando na piscina.

Depois de certa insistência, Mauricio aceitou responder, mas à sua maneira —desenhando. Escolheu estampar a reportagem com Bidu, o primeiro personagem que ele vendeu, nascido nas páginas da Folha, em 1959. A história é contada no filme biográfico, que terá uma sessão antecipada na Mostra de Cinema na próxima terça-feira (21), na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Escrita e dirigida por Pedro Vasconcelos com apoio de Rafael Salgado, a obra vai da infância de Mauricio em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, à juventude na cidade grande, onde o cartunista teve de ralar para transformar desenho em trabalho. Eram os anos 1950, quando os quadrinhos no país ainda eram, em grande parte, traduzidos do inglês.

Vasconcelos passou anos debruçado sobre a produção do longa, pinçando as histórias que considerava essenciais para pintar um retrato de Mauricio que considerava fiel. Fez isso com ajuda de Mauro, o oitavo filho do quadrinista, que, nos gibis, inspirou o personagem Nimbus.

No filme, Mauro faz um Mauricio idealizado, que se diverte com os perrengues da vida. “Eu tinha uma visão superficial sobre esse lado persistente do meu pai”, diz o ator, fruto da relação de Mauricio com Alice Takeda, sua terceira mulher. “Aí ouvi os detalhes das histórias e entendi que ele foi mesmo contra todas as possibilidades para virar quem virou.”

Lúdico, com tintas de fábula, o roteiro evita os fantasmas que cruzaram a vida de Mauricio. Não é uma biografia interessada em todos os traços que desenham o autor —prefere seu lado mais colorido. “Para seguir o tom dos quadrinhos, não cabiam certas questões. Eu não quis nem saber do que fosse obscuro. Mauricio se sentiu confortável, claro. Não fazia questão de expor tudo mesmo”, diz o diretor.

Mas foi inevitável cruzar com um fantasma ou outro. Em meio às gravações, que ocorreram há três anos, Mauro se deparou com algo que sempre o incomodou no pai —a atenção que ele dava ao ofício. “O trabalho foi como seu filho primogênito, e por muitas vezes veio em primeiro lugar, antes das funções de marido e pai.”

Mauricio é o patriarca de uma grande família Sousa. Casou primeiro com Marilene, com quem teve Mariângela, Mônica, Magali e Mauricio, morto há nove anos. O casal ficou junto por 12 anos. Depois, o autor foi ao altar com Vera Lúcia, mãe das gêmeas Vanda e Valéria. O terceiro casório foi com Alice Takeda, em 1973. Juntos eles tiveram Marina, Mauro e outro Mauricio. Os dois se separaram por cerca de sete anos, quando o quadrinista se relacionou com Marinalva dos Santos e teve seu décimo filho, Marcelo.

Depois ele reatou com Alice, com quem está até hoje. “Muitas vezes não precisamos falar um com o outro. Basta um olhar, um gesto e um traço no papel. Ele desenha, eu desenho, e essa é nossa linguagem”, afirma Alice, que o conheceu quando foi contratada como desenhista na MSP, na época chamada de Mauricio de Sousa Produções.

Marina, a sétima filha, também sentia Mauricio distante vez ou outra, apesar de guardar boas memórias das viagens que fizeram pelo mundo. “Meu pai foi carinhoso, fofo e dedicado. Mas não trocava fraldas. Quando chegava do trabalho, a janta tinha que estar pronta, todo mundo de pijamas, de banho tomado. O clássico dessa geração antiga.”

Marina e Mauro começaram a trabalhar ainda jovens na empresa do pai. Os dois são hoje diretores do estúdio, junto de Marcos Saraiva, filho de Mônica, ela agora uma das conselheiras da MSP. “Existia uma hierarquia que foi de encontro com um momento em que eu estava buscando independência dos meus pais”, diz Mauro. “Houve altos e baixos no entendimento das nossas relações profissional e pessoal.”

O jeito de contornar isso, Mauro conta, era puxar conversa para quebrar o gelo —Mauricio foge de papos difíceis, evita conflitos e sempre dá um jeito de apaziguar tudo. “Ele é um homem dos anos 1930, então não consegue se vulnerabilizar. Sempre foi difícil me aprofundar numa conversa com ele. Era uma relação carinhosa, mas de certa forma superficial”, diz Marina, que nas revistinhas virou uma desenhista habilidosa.

Para além do âmbito pessoal, Mauricio aprendeu a fugir de brigas e polêmicas ao longo da sua ascensão nos gibis, numa trajetória conectada a este jornal. Foi na Folha onde ele viu seus desenhos serem recusados pela primeira vez, por um diretor de arte que até hoje se recusa a dizer o nome —”não foi um ‘não’, foi um tabefe na cabeça”, costuma dizer.

Nessa ocasião, o Grupo Folha tinha três publicações —Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite—, que em 1960 se fundiram para formar o jornal atual. Ele acabou contratado pela Folha da Manhã como revisor e logo virou repórter policial. Chamava a atenção pelo domínio da escrita, embora tenha precisado aprender a simplificar seus textos —habilidade que depois seria valiosa para preencher os balõezinhos dos gibis.

Certo dia, Mauricio criou Bidu, inspirado no cão da infância, para ilustrar uma revista. Moacyr Soares da Silva, editor da Folha da Tarde, gostou tanto das tiras que as publicou no jornal em 1959.

Um ano depois, Mauricio seria demitido, conforme ele conta em sua autobiografia, sob a acusação de ser comunista, por defender cotas de publicação para artistas brasileiros —à época, ele era presidente da Associação dos Desenhistas de São Paulo. Sem dinheiro, precisou voltar a Mogi das Cruzes e passou a tentar vender suas tiras a jornais de fora de São Paulo. Deu certo. Houve um momento em que 300 veículos publicavam seus desenhos.

Em 1963, um dos proprietários da Folha, Octavio Frias de Oliveira, o convidou para criar um suplemento infantil dominical, que veio a ser a Folhinha. Naquele ano, Mônica apareceu numa tirinha pela primeira vez, dando uma “coelhada” em Cebolinha. Mauricio, então, montou um estúdio em um prédio vizinho ao da Redação, no centro de São Paulo —também de propriedade de Frias, que nunca cobrou aluguel. Era a Bidulândia, onde ele e sua equipe ficaram de 1964 a 1987, antes de seguir com a empresa, já muito maior, para outro endereço.

Hoje Marina e Mauro estão à frente de mais de 200 funcionários, que produzem cerca de 20 revistinhas por mês. Com o sumiço das bancas e as crises no mercado editorial, eles tentam levar a MSP cada vez mais para o campo do audiovisual. Os lançamentos frequentes nos cinemas e no streaming seguem um movimento em que Mauricio investiu, desde os anos 1980, de forma pioneira no Brasil, na produção em massa de curtas e longas animados.

Nos últimos seis anos, foram dois filmes para a turminha, um para o Chico Bento, outro para a Turma da Mônica Jovem, voltada aos adolescentes, além de três séries de TV com atores e uma de animação, sobre o Astronauta. Houve até uma versão idosa de Mônica e sua trupe no Globoplay.

“Eles estão seguindo o que aprenderam com o pai, mas modernizando”, diz Sidney Gusman, editor-chefe da MSP e uma espécie de braço direito do fundador.

Gusman costumava topar com Mauricio nos corredores todos os dias. Ganhou a confiança do chefe quando convidou 50 artistas para desenharem reinterpretações da Turma da Mônica toda, e a obra foi um sucesso de vendas.

A iniciativa de Gusman, editor-chefe da empresa de Mauricio de Sousa, virou depois um selo, a Graphic MSP, que seleciona quadrinistas para criarem HQs que reimaginam os personagens clássicos do quadrinista para um público mais velho. “Quando ouviu a minha ideia, Mauricio se debruçou na mesa e perguntou ‘você vai cuidar bem dos meus filhos?’”, relembra Gusman. “Eu disse que sim, que cuidaria como ele, que os quadrinistas não poderiam matar a Mônica ou fazer os personagens treparem.”

Esse movimento todo representava uma ruptura no esquema de produção criado por Mauricio. Por décadas, enxergando a MSP como uma fábrica, ele ensinou dezenas, senão centenas, de artistas não a criarem, mas a reproduzirem seu estilo, desde os traços até o tom das histórias. Ideias que, na prática, acabavam sempre atribuídas a ele.

Isso gerou polêmica. Vários artistas da cena e ex-funcionários reclamavam da forma como o quadrinista dava crédito aos desenhistas e roteiristas da MSP —por anos, Mauricio publicou as revistas só com sua assinatura, ou com os nomes dos outros artistas escondidos no expediente, ao final das publicações. Depois das reclamações, há dez anos a empresa passou a incluir os nomes dos autores no começo das histórias. Gusman era ele próprio crítico à atitude e ficou aliviado com a mudança.

Mas foi esse protecionismo que levou Mauricio ao topo de um império, dizem o editor-chefe e outras pessoas que trabalharam com ele. “Um dia eu estava fechando uma capa, Mauricio parou atrás de mim, disse que tinha muito amarelo e contou quantos por cento da cor ele queria”, diz Mauro de Souza, quadrinista que trabalha há 27 anos na MSP. “Ele é muito cauteloso. Sempre tínhamos de convencer, justificar o porquê de mudar algo que estava sendo feito há 40 anos”, acrescenta Flavio Teixeira de Jesus, que está na empresa há 35 anos.

Os dois deram entrevista enquanto fechavam os últimos detalhes da Graphic MSP que vão lançar em dezembro. Vai se chamar “Mauricio: Repórter”, sobre os tempos do chefe neste jornal, em mais uma etapa das comemorações do aniversário de 90 anos. Mauricio prosperou também graças à atenção ao espírito de cada época, diz Gusman. “Os personagens dele sempre falavam a língua do dia e da hora. Nos anos 1970, a Mônica adorava Francisco Cuoco. Depois, os Jonas Bodes foram criados”, diz ele, sobre uma paródia que Mauricio fez da banda de pop adolescente Jonas Brothers, famosa nos anos 2010.

O quadrinista teve de adaptar sua obra várias vezes. Fez Mônica ser menos agressiva —ela não ataca mais os meninos com o coelho Sansão— e mudou a forma como o caipira Chico Bento falava após um grupo de professores fazer críticas por isso supostamente influenciar as crianças da vida real que liam as histórias a falar e a escrever errado.

Elevou, ainda, Milena, a primeira menina negra de seus gibis, criada em 2017, ao Olimpo da turminha. Antes dela, personagens negros apareceram pontualmente, em figuras como a de Jeremias ou de Pelezinho, inspirado no rei do futebol. Hoje, Milena é parte do grupo principal, que deixou de ter só as quatro figuras clássicas para virar um quinteto.

Por outro lado, Mauricio não criou personagens LGBTQIA+ de importância. Quando deu indícios de que Caio, um coadjuvante da revista “Tina“, estava comprometido com outro menino numa história de 2009, ouviu críticas e achou que estava cedo demais para tocar no assunto. De lá para cá, só a Graphic MSP de Tina, “Respeito”, voltou a se aventurar nessa seara, com Kátia, uma personagem lésbica.

O ponto é que ela foi pensada pela autora da trama, Fefê Torquato, e não por Mauricio, ainda que as obras do selo passem pelo seu crivo. Iniciativas como essa têm, para além de apelo emocional, uma vontade de atender às demandas do mercado por diversidade, afirma Renata Sturm, que escreveu com seu marido, Guther Faggion, o livro “Crie de Manhã, Administre à Tarde”, sobre o lado empresário de Mauricio.

“Havia uma necessidade mercadológica. Fora que seria uma ignorância não incluir toda a população, sendo que ele sempre atingiu toda ela.” Eles fizeram várias reuniões com Mauricio para investigar o sucesso da MSP. Para ela, o artista teve sacada de mestre quando entendeu o poder do licenciamento, que ceder os personagens a outras marcas renderia muito dinheiro, até mais que os gibis.

De olho no faturamento que poderia ter com as vendas de produtos estampados com seus personagens, então, Mauricio de Sousa emprestou o elefante Jotalhão aos extratos de tomate, Mônica às maçãs, e a turma toda aos macarrões instantâneos. Mas, antes disso, Mauricio precisou dar vida aos personagens que se tornaram suas galinhas dos ovos de ouro. Fez isso, na maioria dos casos, reproduzindo e exagerando as características de pessoas que atravessaram toda a sua infância e juventude.

Criou figuras para cada um dos dez filhos, outra para a avó, Benedita, uma para o irmão, Marcio Araujo, com quem brincava de carrinho de rolimã nas ruas de Mogi das Cruzes. Foi nessa época que Mauricio aprendeu a amar histórias.

Era um ouvinte atento daquelas contadas pela avó e ia dormir pensando nelas. Quando se deparou com uma revista em quadrinhos largada na rua, correu até sua casa para pedir que a mãe, Petronilha, lesse tudo em voz alta. E se apaixonou. Foi alfabetizado com as HQs. Lia de tudo —O Guri, O Globo Juvenil, a revista Gibi. Virou fã dos maiores quadrinistas americanos da época, de Will Eisner a Hal Foster. Ele certamente não acreditaria que, décadas depois, viraria amigo do próprio Eisner e de Osamu Tezuka, dois deuses dos quadrinhos, nos Estados Unidos e no Japão.

Munido de tanta referência, não faltou inspiração para quando começou a inventar suas próprias criaturas. Foi do cemitério, com a Turma do Penadinho, ao céu, com Anjinho e Astronauta. Fez também personagens que habitam as florestas, com Turma da Mata, e a roça, com o emblemático Chico Bento, inspirado num tio-avô de Santa Isabel, cidade do interior onde Mauricio nasceu, em 1935. Enxergava sua obra como uma pizza —cada fatia devia atender a um público diferente.

Assim criou figuras de objetivos distintos, como o guerreiro pré-histórico Piteco, a descolada Tina, e Dorinha, uma personagem com deficiência visual. Homenageou até a si mesmo com o dinossauro filosófico Horácio —seu alter ego, e que, por isso, só tinha histórias escritas por ele próprio. Uma das origens mais curiosas é a do sapeca Cebolinha, que tem como missão torrar a paciência de Mônica.

Sua inspiração é, na verdade, um homem muito tranquilo, o amigo de infância Luiz Carlos da Cruz, que brincava de bolinha de gude com Mauricio e toda a molecada em Mogi das Cruzes —Jair, o menino sujinho que nas páginas virou Cascão, também era parte desse grupo. Antonio, pai de Mauricio, achava engraçado o cabelo espetado de Luiz Carlos da Cruz e deu a ele o apelido que seria sua alcunha pelo resto da vida. Hoje, o seu Cebola, como pede para ser chamado, tem 77 anos e vive em São Sebastião, no litoral paulista. Afirma ter um orgulho danado do sucesso do personagem.

Quando Mauricio saiu de Mogi para tentar a vida, Cebola ficou com ciúmes. “Na época ele não ligava muito mais para a gente. Víamos ele desenhando para todo mundo, mas não dava nem para chegar perto, porque ele ficava fora do país, ia para lá, para cá.”

A sensação de muitos de seus fãs é hoje parecida com a de Cebola. Parece não haver mais plano infalível que faça Mauricio de Sousa aparecer em público, abraçar os fãs e dar autógrafos —sempre personalizados , com o desenho do personagem favorito de cada um. Mas talvez ele só esteja mais Horácio que nunca, pensando bem antes de dizer qualquer outra coisa.

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