Antes escondida da publicidade oficial do governo de Vladimir Putin, a ajuda militar dada pela Coreia do Norte na Guerra da Ucrânia agora é objeto de celebração em Moscou. Seções em museus, exposição de arte e até um novo monumento fazem a elegia à ditadura da Kim Jong-un na capital russa.
O pacto de defesa mútua entre os dois países foi assinado em 19 de junho de 2024, mas apenas dez meses e dez dias depois o presidente russo fez o agradecimento formal pelo envio de tropas para a reconquista da região meridional de Kursk, que teve um pedaço ocupado por Kiev por oito meses a partir de agosto do ano passado.
De lá para cá, a Coreia do Norte saiu das sombras, ao menos aos olhos moscovitas. No Museu Central das Forças Armadas, o mais antigo do gênero na cidade, Pyongyang já ganhou uma pequena vitrine na exposição referente ao que o Kremlin eufemisticamente chama de Operação Militar Especial.
Há lá uma farda norte-coreana, fotos de soldados do país com russos em Kursk e um pequeno quadro, no melhor estilo realista socialista, agradecendo o papel das forças de Kim na ação. Quando a Folha visitou o museu, no dia 27 de setembro, havia poucas pessoas interessadas.
Na semana seguinte, a celebração do apoio antes escondido foi ampliada. No dia 30 de setembro, o Museu de Artes Decorativas de Moscou abriu a maior exposição norte-coreana fora do país de Kim na história, com quadros celebrando a ação em Kursk, o regime e a Guerra da Coreia.
A reportagem já não estava em Moscou, mas uma pessoa que visitou o local contou ter tido lembranças de sua infância na União Soviética: pinturas em estilo realista socialista simplórias e carregadas de ideologia.
No dia seguinte, o ministro da Defesa norte-coreano, No Kwang Chol, reuniu-se com seu par russo, Andrei Belousov. Os temas da conversa não foram divulgados, mas ambos inauguraram um novo monumento em Moscou, dedicado aos guerrilheiros comunistas do país de Kim e sua luta contra a ocupação japonesa, que durou de 1910 a 1945.
Na mão contrária, agora há um voo Moscou-Pyongyang, estímulo ao turismo russo no país asiático e visitas de autoridades do governo Putin são frequentes. Na sexta passada (10), o ex-presidente Dmitri Medvedev foi convidado de honra no desfile dos 80 anos do partido de Kim.
Apesar da publicidade, ainda há um manto de segredo sobre a natureza da ação norte-coreana em Kursk, a primeira ocasião em que tropas asiáticas lutaram em solo europeu desde as invasões mongóis do século 11.
Mantendo sua tradição de verniz legalista, Putin sempre enfatizou que os norte-coreanos lutaram apenas em território russo, seguindo a provisão de assistência prevista no artigo 4º do tratado de 2024. Mas nunca foi revelado o número de forças envolvidas.
A inteligência sul-coreana falou em talvez 12 mil. O desempenho também é incerto: analistas militares russos dizem que o treinamento e equipamento dos soldados de Kim eram de baixa qualidade, o que teria levado, agora segundo a avaliação de Kiev, a 600 mortos e um número desconhecido de feridos.
A única dica nesse sentido veio do próprio ditador, que inaugurou um salão em homenagem aos caídos em Kursk no fim de agosto na sede do partido em Pyongyang. As imagens permitiram contar 101 fotos de soldados mortos. Agora, Kim vai enviar 5.000 militares para ajudar a reconstruir a infraestrutura da região.
A relação entre Rússia e Coreia do Norte remonta ao apoio dado pela União Soviética à formação do país, em 1948, e às tropas comunistas do avô de Kim durante o embate com o sul capitalista de 1950 a 1953, suspenso em um armistício inconcluso até hoje.
Desde o fim da Guerra Fria, porém, Pyongyang cai na esfera econômica e política chinesa, o que só foi alterado com a aproximação proposta por Putin. Em troca de munição e tropas, Moscou tem tecnologia militar e experiência de combate a oferecer.
E, ainda que ambos os países sejam potências nucleares, a Rússia tem mais de cem vezes o número de ogivas da Coreia do Norte em caso de conflito com rivais, a acreditar no acordo mútuo.
Os chineses não passaram recibo, mas Xi Jinping fez questão de ter Kim e Putin a seu lado no grande desfile militar em que celebrou os 80 anos do fim da Segunda Guerra, no começo de setembro. Para o Ocidente, o simbolismo basta.
Até então, a mais visível face da relação no cotidiano russo ocorria no extremo oriente do país, como em Vladivostok, onde há uma filial da rede de restaurantes Pyongyang, vistos no Ocidente como fachada para lavagem de dinheiro do regime.
MOSCOU NORMALIZA A GUERRA
A inserção do papel das forças de Kim no cotidiano, além dos intensos contatos entre os países, é parte da normalização do conflito em Moscou, como a Folha já relatara em outras três visitas posteriores à eclosão da guerra, quando também estava na capital.
No caso de museus, a pequena mostra norte-coreana é condizente com a modéstia do relato sobre o conflito.
Há um drone aqui, uma metralhadora ali, e duas vitrines ideológicas no melhor estilo soviético. Uma traz um livro com dizeres de Hitler que teria sido capturado no vizinho, enfatizando o caráter neonazista de Kiev descrito por Putin, e outro imagens ligando o governo de Volodimir Zelenski ao Ocidente.
No mais, a guerra segue em outdoors conclamando voluntários a se inscrever por uma boa bolada, para os padrões locais: em Moscou, onde o soldo e benefícios são maiores do que em outras regiões, a promessa inicial é do equivalente a R$ 340 mil pelo serviço militar, fora pensões e ajudas extra.
O jornalista viajou a convite da Rosatom