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Nova ‘Vale Tudo’ virou passeio no parque com Odete querida – 11/10/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] As imensas diferenças entre a “Vale Tudo” de 1988 e a de 2025 espelham também as transformações do país em quase 40 anos. A primeira versão virou um clássico por ser um retrato agudo dos primeiros anos da redemocratização: o Brasil mostrava a sua cara, maculada por corrupção e resquícios do autoritarismo, na esperança de florescer com a volta dos governos civis. Em 2025, a descrença na política e na ideia de coletividade diluiu o debate sobre o nosso futuro, restando um mero entretenimento que louva o individualismo e faz da crueldade um sonho de consumo.

A grande pergunta sobre “Vale Tudo” é: o que mudou da primeira versão, em 1988, para a atual?

A resposta é rápida: a novela histórica discutia se, no Brasil, ser honesto era coisa de otário, questão que sumiu do remake. Tivemos agora uma história sem foco, sem sentido, apenas marcando tabela.

Além disso, a primeira novela tinha uma trinca de personagens principais —Raquel, a honesta; Fátima, a filha desonesta; e Odete, a deusa “ex machina” que dava à maldade uma causa, uma base social, sendo a expressão de ricos desalmados. Das três, sobrou apenas a ricaça como personagem relevante na versão de 2025.

O que significava o título “Vale Tudo” em 1988? Era um protesto indignado. As coisas estavam péssimas, mas queríamos mudar! Ora, nesses 37 anos o Brasil melhorou muito —vejam no streaming da Globoplay os primeiros capítulos da primeira novela: parecem outro país, uma distopia do passado. (Há desonestidade, mas bem menos).

Na versão atual, porém, o título é apenas uma constatação, quase um passeio no parque. Em tempos de empreendedorismo e ódio, de Pablo Marçal e Bolsonaro, a esperteza malvada é aceitável. Para alguns, é até ideal, sonho de consumo.

Debora Bloch, a nova Odete Roitman, decifra no Instagram: “O público gosta de ver a maldade, a crueldade —na ficção, porque é um ambiente seguro”. Acrescenta: “Na ficção, sem a condenação social e moral, você pode se identificar”, inclusive e especialmente com os vilões. Quem não se divertiu com os idiotas que são César e Olavo? A tragédia sumiu, a versão atual tem tinturas fortes de comédia.

Novelas são obras abertas. Mudam conforme a reação do público. O autor escuta os espectadores para o bem e para o mal. Há uma longa tradição de personagens que morrem e ressuscitam, de abusos narrativos, de falhas de continuidade, que são essenciais ao gênero. Usados em excesso, porém, tais recursos podem ser fatais.

Nossas novelas, desde a primeira “Vale Tudo”, demoraram anos até permitirem a personagens lésbicas uma expectativa de vida razoável, porque o preconceito as matava em menos de um mês. Ressurreição e assassinato, vida e morte dependem do público. Novelas dialogam com a sociedade: se tiverem êxito, expressam algum espírito do tempo.

“Vale Tudo”, em 1988, mostrava um país em mudança. O Brasil estava esgotado: da ditadura, da corrupção, da inflação. Raquel, a protagonista, exprimia a inocência e decência de uma mulher divorciada intensamente ética, em confronto com a filha bandida.

Fazer um remake, 37 anos depois, foi um salto no escuro. Já não somos o mesmo país. Melhoramos, mesmo que alguns não o percebam: a inflação atual é uma fração da antiga, diminuíram a injustiça e as desigualdade sociais.

Na “Vale Tudo” de 1988, o primeiro negro a aparecer era um trombadinha; hoje, temos duas negras na trinca principal, e mais uma como “diretora trainee” (não tenho ideia do que seja isso). A decepção, contudo, vem sendo grande. O sonho virou pesadelo.

O conflito maior, entre Raquel e Fátima, desmilinguiu. Na pele da mãe abnegada, Taís Araujo, uma excelente atriz, ficou em terceiro plano.

Quem salva a novela é Debora Bloch, um dos grandes nomes da cena brasileira. É o consenso sobre a novela: o talento enorme da atriz. Papel difícil, ainda mais porque antes dela foi de Beatriz Segall, mas Bloch o recriou. Não é questão de ser melhor ou pior, é uma criação artística distinta.

Aliás, Debora Bloch e Fernanda Torres são os destaques do ano na atuação brasileira, com jogos cênicos bem diferentes: em “Ainda Estou Aqui”, Torres se identifica com a personagem, fazendo-nos sentir suas dores; Bloch, ao contrário, marca uma distância, talvez brechtiana, de sua vilã. O próprio tom cômico, ou irônico, com que ela faz Odete Roitman ilustra esse afastamento. Tragédia no Oscar, comédia (mesmo discreta) na telinha.

Em 2025, Raquel despencou e Fátima amarelou, enquanto Odete se tornava centro indiscutível das atenções. Odete 1 era odiada; Odete 2 é admirada: uma loba. Li mulheres elogiando-a por fazer, com os homens, as canalhices predatórias que historicamente muitos deles fazem com elas. Um enorme erro ético, o dessas admiradoras.

Penso que a chave para o sucesso da nova Odete seja justamente a ironia, o distanciamento. Não chega a ser um tipo cômico, mas o afastamento entre atriz e personagem abre espaço para um quase riso. É isso o que permite alguma crítica, numa novela infelizmente afogada no excesso de merchandising.

Se Raquel cede o protagonismo a Odete, isso indicaria que perdemos a esperança na honestidade, encarnada, no ano da Constituinte, pela atriz Regina Duarte?

Os tempos mudaram. A ditadura caiu de podre, em 1985. Em 1964, ela prometia acabar com a inflação; duas décadas depois, o custo de vida era mais alto do que antes do golpe militar. Os governos civis receberam a mais maldita das heranças. Os ditadores souberam espetar na conta da democracia o desastre que cuidadosamente, ao longo de duas décadas, produziram.

O fim da ditadura era tempo de esperança: acreditava-se que, com a democracia, o país floresceria. Mas como foi difícil! A inflação perdurou dez anos. A Constituição só começou a ser realmente o que é, um programa para o país, 15 anos depois de promulgada. Contudo, havia esperança.

Não por acaso, o partido da utopia —termo ora elogiado, ora ridicularizado— era o PT, que prometia combater a injustiça social e a corrupção. Nos anos seguintes, as diferenças entre ele e o PSDB, fundado em 1988, existiam no plano das políticas sociais, mas não eram extremas: dois partidos contra a ditadura, democráticos, defensores dos direitos humanos.

Hoje, a descrença na saída (que só pode ser coletiva: social e política) para as crises brasileiras é o pano de fundo da nova “Vale Tudo”.

Lembro-me de uma noite de junho de 2013. Na avenida Paulista, coincidiam uma manifestação pelo passe livre, uma contra o assassinato de uma criança boliviana e outra de surdos. Vivemos uma politização a jato da sociedade. Para cada problema, identificava-se uma solução política.

As ruas manifestaram essa esperança, que logo morreu; talvez porque se quisesse da política o milagre, em vez da trabalhosa construção de saídas. A frustração foi enorme. Por alguns meses, a política pareceu ser a solução; um ano depois, os políticos eram vistos como o problema —e assim permaneceram.

Instauramos a democracia em 1985; domesticamos a inflação em 1994; começamos a maior inclusão social de nossa história em 2003. Três agendas prioritárias. Mas em 2013 clamamos por bons transportes, educação, saúde. Não deu certo. O apelo por melhores políticas públicas foi desviado para o lugar-comum da má política brasileira: a denúncia a (supostas) corrupções.

De 1985 a 2013, vivemos sucessivas esperanças a que se seguiram as apostas na Lava Jato e no improvável bolsonarismo. Cada um dos últimos testes culminou em frustração: o país ficou blasé. Talvez por isso, a exortação ética da primeira “Vale Tudo” cedeu lugar a uma versão nova que é mero entretenimento.

A esperança virou mercadoria escassa em nossa vida pública, por sinal sempre frágil e precária (o Brasil sempre aposta na vida privada, para nós o espaço das virtudes, enquanto vemos no espaço social a arena das maldades). Construir o laço social é indispensável, mas poucos creem nele. Preferem saídas individuais, que nada resolvem.

O esvaziamento da dimensão pública é a raiz de nossos pesadelos. Esperamos que a energia criativa venha de indivíduos, enquanto acreditamos que a vida pública apenas a dissipa. Não há sociedade que funcione desse jeito, como um coletivo que dilapida uma (suposta) riqueza de proveniência individual. “Virtudes privadas, vícios públicos”, eis nossa estúpida crença, que estes 37 anos apenas cresceu.

“Vale Tudo 1” denunciava o horror, com a esperança de vencê-lo. “Vale Tudo 2” expõe o horror como se ele tivesse graça. Por isso, Odete 2 pode se tornar uma querida: não mais sintetiza o que queremos exorcizar.

Em 1988, amávamos mais o Brasil. Queríamos resolver seus problemas, que, afinal, eram fruto de uma ditadura, que ninguém elegeu. Não foram causados por nós.

Odete 1 era antipática por odiar nosso país. Seria exceção? A novela, até mesmo na “banana” que Marco Aurélio dava no final (para o país, para os espectadores, para a elite, para quem?), buscava pôr-nos em brios.

Vamos mudar isso ou não? Raquel sempre cobrava —dos seus interlocutores, mas sobretudo do público, dos espectadores receosos de assumir sua cidadania— decência. Isso sumiu na segunda versão. Raquel não tem mais papel público, é só uma empreendedora que virou empresária.

Agora, após 40 anos de democracia, como negar nossa responsabilidade pelo que esteve e está aí? Em 1988, tratava-se de assumirmos o mando de nossos destinos. Hoje, queremos tudo, menos isso. Queremos terceirizar nossas responsabilidades.

Por isso é bom ter Odete 2 no comando. Com ela, parece normal não amar a pátria —aliás, no Dia da Independência, os supostos patriotas desfraldavam a bandeira dos Estados Unidos! Odete 2 é grife, é moda.

Quando Ivan tentava corromper um alto funcionário, a mando de Odete, em 1988, isso era algo que queríamos extinguir. Em 2025, a mesma cena é rotineira. A corrupção deixa de ser algo a extirpar. É o nosso cotidiano, como a miséria que continua e tudo o mais.

A única saída, em 2025, é o empreendedorismo. Novelas costumam ter núcleos de ricos e de pobres. Precisam, dizia Gilda de Mello e Souza, minha primeira orientadora, contemplar todas as classes sociais. Entre elas, circula-se pelo amor.

O empreendedorismo também ajuda, pois faz alguns pobres ascenderem pelo mérito. Sim, esse é um ponto positivo nessas décadas: pobres não sobem na vida só porque um rico ou uma rica os ama. Sobem porque são batalhadores, para usarmos o conceito que Jessé de Souza emplacou.

Mas o conflito social, tão forte nas novelas da redemocratização (como a sequência de “Vale Tudo”, também escrita por Gilberto Braga, a cruel “O Dono do Mundo”, de 1991, em que o canalha rico aposta com o amigo que desvirginará a noivinha linda antes do próprio marido), apagou-se.

A maldade de Odete e Marco Aurélio virou agora um traço de caráter pessoal, não é mais uma condição social. Será por acaso que esses são os personagens mais fortes da nova versão? Sim, os dois atores são excepcionais, Bloch e Alexandre Nero, porém o destaque vem não apenas do esforço individual dos profissionais —como eu disse acima, o brasileiro esquece o social e valoriza o indivíduo—, mas também do fato de que o enredo mudou.

“Vale Tudo 2” fincou-se nos conflitos laterais. Personagens secundários se destacaram, sem se fortalecerem. A trama central perdeu prestígio. Daí, uma leveza nesta segunda versão.

Já não se exibe o drama nacional, a escolha entre um país decente e a ruína ética e social. Parece que aceitamos a queda. Tem razão Edgar Moura Brasil, viúvo de Gilberto Braga (1945-2021), ao lamentar que a premissa original da novela, “a reflexão se vale a pena ser honesto no Brasil”, tenha se perdido na releitura.

Repito: conquistamos muito nestas três décadas e meia. Mas o que não conseguimos nos frustra ainda mais. É como se o Brasil morresse na praia. O que decepciona é o terço de copo vazio. Daí, uma novela sem esperança.

A morte de Odete vira sensação; já a morte da chantagista, sua talvez nora, nem investigação tem. Nem na morte ricos e pobres são iguais. Não é só erro de continuidade (embora haja muitos), é perda de foco.

Novelas vendem sabonete, como dizia Gilberto Braga, mas não só. Quando são boas (“Dancin’ Days”, “Roque Santeiro”, “Paraíso Tropical”), falam de nossa vida, de nosso país.

Esta versão, infelizmente, não. Dizer “vale tudo”, em 1988, era um protesto: “não, não vale tudo”. Hoje, é apenas uma afirmação. Do remake, sumiu a ética.

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