O homem que se acostumou a protagonizar eventos com milhares de pessoas na Bolívia tem hoje uma rotina bem diferente. Evo Morales, 65, passa seus dias no acampamento de Lauca Ñ, próximo da cidade de Villa Tunari, numa área de selva a 400 km de Cochabamba. O local está cercado de barracas em que acampam indígenas de distintas etnias bolivianas que se comprometeram a proteger o local 24 horas por dia. Muitos estão armados com lanças de madeira e escudos caseiros.
Para a reportagem entrar ali, uma indígena abre uma cancela, também de madeira, e faz o controle de todos os que estão no carro e são aguardados pelo ex-presidente. Na prática, Evo não está escondido. As autoridades sabem que esse é seu atual endereço.
Mesmo com duas intimações descumpridas para comparecer à Justiça —ele é acusado de corrupção e de estupro de uma adolescente—, até hoje ninguém o buscou para ser detido e conduzido a algum interrogatório. Não se sabe se essa situação permanecerá assim depois do segundo turno das eleições, no próximo domingo (19), quando a Bolívia voltará a ter um governo à direita. Evo tentou de todas as formas, sem sucesso, concorrer a um quarto mandato, algo vetado pela Constituição.
Há dois pequenos edifícios no refúgio do ex-presidente. Num deles, funciona a rádio do sindicato de plantadores de coca, em que ele iniciou sua atividade política. No outro, concentra-se toda a equipe de assessores.
Evo despacha no segundo andar, num cômodo que reproduz a sala presidencial do Palácio Quemado, ocupada por ele de 2006 a 2019. Detrás de sua mesa, estão as bandeiras de Cochabamba, a da Bolívia e a multicolorida wiphala, que representa os povos indígenas. Na outra parede, está a foto oficial de seus tempos de presidente, com a faixa.
Ao lado dessa construção há uma pequena quadra de esportes, que ele usa para fazer atos políticos, mas também para dar suas corridinhas de manhã. Completa seus exercícios com abdominais num aparelho que fica ao lado de sua sala. Diz fazer três séries de mil repetições —na frente da reportagem, fez apenas um pouco mais de cem.
Evo também mostrou seu sítio, a uns 20 minutos de carro do acampamento. Ali, em 15 tanques, cria tambaquis. Noutro pedaço de terra, fica uma plantação de abacaxis e laranjas. Assim, tenta mostrar-se como um homem do campo, que não quer enfrentamentos com ninguém. De sua base nesta região conhecida como Trópico de Cochabamba, porém, ele convocou marchas e protestos em várias partes do país contra o atual presidente e hoje desafeto, o impopular Luis Arce, que desistiu de tentar se reeleger.
Nesta entrevista, o ex-presidente é enfático ao dizer que desta vez não sairá da Bolívia —ao renunciar, em 2019, exilou-se na Argentina para depois voltar ao país— e que lutará para o próximo governo não encerrar os programas sociais que criou.
Como tem sido a sua vida no Trópico de Cochabamba? Quando conversamos pela primeira vez, há muitos anos, o sr. me disse que, ao se retirar da política, queria se instalar aqui. De fato voltou ao Trópico, mas não saiu da política. Por quê?
Nasci no Altiplano [região andina] e cheguei ao Trópico aos 19 anos, com meus pais, para sobreviver e tentar melhorar nossa situação econômica. No Altiplano, as coisas eram muito difíceis. Na agricultura, só podíamos colher uma safra por ano; depois vinham geadas, e tudo se congelava. Se faltava chuva, era seca e fome. Por isso muita gente migrou do oeste para o leste. Nasci em Oruro, mas foi aqui que comecei a me revoltar de ver tanta pobreza e injustiça.
Naquela época, ainda havia uma base da DEA (agência antidrogas dos EUA) no Trópico, não?
Sim, a justificativa era combater a produção de coca. Mas aqui se produz coca para distintos usos, faz parte de nossa cultura. Havia ações antidrogas completamente anticonstitucionais. Toda essa época de luta anti-imperialista aqui não se esquece. Por isso, o Trópico de Cochabamba é muito fiel ao nosso movimento. Eu e Lucho Arce [atual presidente] tivemos mais de 95% de votação aqui. Mas só conseguimos expulsá-los [os americanos] de verdade em 2008, no meu governo.
Qual sua expectativa sobre o segundo turno da eleição boliviana?
Lamento que o nosso próximo governo vá ser de direita. Esse setor sempre esteve desorganizado. Mas celebro muito o fato de que votos nulos, brancos e de ausência às urnas tenham sido mais de 50%.
Mas agora vem o segundo turno…
O fato é que temos mais de 50% das pessoas que não querem nenhum desses dois candidatos [o senador Rodrigo Paz e o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga], e vamos continuar nosso ativismo daqui. Este é o melhor momento da nossa história. Somos a maior força política do país.
Se houver uma pressão como a de 2019, quando o sr. renunciou e se refugiou na Argentina, pretende deixar novamente o país?
Não há maneira de que me tirem daqui desta vez. Porque estarei aqui para defender que não retirem os benefícios sociais, os planos de moradia que criei ou que retirem do nome da Bolívia o “Estado Plurinacional”, porque com isso incluímos a sociedade e demos dignidade a dezenas de nações indígenas.
O sr. teme uma nova onda de tensão social caso Jorge “Tuto” Quiroga, seu principal opositor político, vença as eleições?
Isso vai acontecer [se Quiroga for eleito]. Porque ele virá com seu projeto neoliberal que significará ajuste social, corte de gasto público e de subsídios, e as pessoas vão se levantar. Ele não tem pudores em reprimir. Vai haver enfrentamentos, mortos e trocas de presidentes como ocorria nas décadas antes de que chegássemos ao poder.
Como o sr. lida com os processos na Justiça? Não teme ser preso?
Tenho 14 processos abertos contra mim, mas não encontraram evidências até hoje. Quando cheguei da Argentina exilado, recebi minha renda de ex-presidente e, com isso, investi em piscicultura, na plantação de frutas e na minha pequena fazenda aqui no Trópico. Nem usei o dinheiro todo, e não há um centavo de corrupção que possa ser provado.
O caso de abuso de menor tampouco se pode provar, porque a moça, que é minha amiga [e com quem tem um filho], disse que não tinha havido abuso. Se não há crime, não há delito, não é mesmo?
Há uma preocupação grande com a economia, que vai mal em várias frentes. Quanto tempo um novo governo aguentará com o descontentamento por falta de respostas rápidas?
No fim do ano passado, reuni planejadores e economistas de confiança. Eles me disseram: “a economia está destroçada”. Quando cheguei ao governo, havia US$ 1,7 bilhão em reservas internacionais; em 2015 chegamos a US$ 15 bilhões. Mais tarde caiu, deixei acima de US$ 10 bilhões. Após o governo de [Jeanine] Áñez, ficou em US$ 5 bilhões líquidos. Hoje falam em cerca de US$ 2 bilhões. Por isso, falta dinheiro para o combustível.
Na minha primeira gestão, enfrentamos crise com austeridade. Eliminamos gastos das autoridades e obtivemos perdões de dívida com países estrangeiros. Com as nacionalizações, levantamos receita e cobrimos o déficit fiscal. Obviamente há que se fazer ajustes, mas eu nunca acreditei em ajustes sem contrapartida social. Se vamos cortar um subsídio, temos de dar algo em troca. Se vamos aumentar o preço dos alimentos, vamos distribuir cestas básicas. Não há nada bom que possa surgir em arrasar a economia, como faz Javier Milei na Argentina, deixando os aposentados morrerem porque não podem comprar remédios.
E quanto à nova situação eleitoral?
Agora não vejo um plano para tirar o país da crise. Não há o menos pior entre Rodrigo Paz e Tuto Quiroga. Nos programas econômicos, coincidem.
Raio-X | Evo Morales, 65
Líder sindical cocaleiro, Evo Morales foi presidente da Bolívia por três mandatos, de 2006 a 2019, quando se exilou sob o argumento de que havia um golpe de Estado em curso. Em 2020, retornou ao seu país e, desde então, insiste em concorrer à Presidência, mesmo após ser impedido de se candidatar. É alvo de investigações sobre abuso de menores, que diz se tratar de perseguição.