Das séries de televisão que não chegaram ao fim, “Caverna do Dragão” talvez seja uma das mais famosas. Lançada em 1983, a animação segue um grupo de amigos que é transportado para uma terra de fantasia e vive aventuras sob os cuidados do Mestre dos Magos, feiticeiro que detém antigos conhecimentos.
A atração durou três temporadas e sua conclusão nunca foi exibida. Entre as teorias que se espalham até hoje pelas redes, surge o brasileiro “O Último Episódio”. O longa da produtora Filmes de Plástico torna o capítulo derradeiro na estratégia de Erik, garoto de 13 anos que busca conquistar a menina dos sonhos.
O ano é 1991 e o plano entra em ação no bairro de Jardim Laguna. É onde o jovem, papel de Matheus Sampaio, apronta com os melhores amigos, Cassinho, vivido por Daniel Victor, e Cristão, interpretada por Tatiana Costa, e se apaixona pela recém-chegada Sheila. Ele descobre que a garota ama o desenho e diz ter uma das raríssimas cópias do final. Resta aos três usar a criatividade e filmar a sua versão.
“Vejo no Eric essa força de fabulação. É assim que ele vê o mundo e fala com as pessoas. Existe ainda uma vontade de dominar as coisas e estabelecer suas ideias sobre tudo. Sinto que eu era igual quando criança e talvez preserve isso até hoje. Mas espalhei o meu lado sonhador entre todos os personagens. Só assim eu seria capaz de retratar uma época”, afirma o diretor, Maurílio Martins. Com direito a arquivos de sua infância e rodado onde cresceu, ele diz que o projeto é “semi-biográfico”.
Com uma gravadora antiga em mãos, herdada pelo protagonista, o trio junta tábuas de madeira, figuras de cartolina e a periferia de Minas Gerais ao criar situações para os discípulos do Mestre dos Magos. Mas a trajetória hipotética da animação importa menos que a das crianças de carne e osso.
Seja pela mãe religiosa que não compreende o filho Cassinho, seja pela falta da figura materna, que mora nos Estados Unidos, na vida de Cristão, a juventude retratada enfrenta ruídos. O mais imponente dos atravessamentos, como Martins os descreve, é a morte precoce do pai de Erik. Além de memórias passageiras, o menino se apega a vídeos deixados para trás.
“Meu pai morreu em 2003. Fui o último a conversar com ele. Falamos sobre roteiros, sobre a criação de narrativas. Mesmo quando não é proposital, meus projetos acabam sendo demarcados por essa ausência. Eu sempre tive muita dificuldade em falar sobre isso”, diz Martins, quase às lágrimas.
“Mas percebi estar lidando melhor com a situação. Sinto que o cinema é uma forma de curar minhas dores. Meu pai e minha mãe aparecem em cena, em fotos. Foi a primeira vez que homenageei a memória dele e coloquei uma de suas fotografias.”
Partidas de futebol, aniversários e eventos escolares tomam as imagens da vida do cineasta. O efeito é o contraste entre a nitidez das cenas de ficção e a textura granulada do passado. A construção da obra também foi marcada por oposições. Realizado na pandemia, o set reunia o calor típico da Filmes de Plástico e os cuidados impostos pelo isolamento social. Numa época de fragilização das políticas culturais, o filme nasceria quatro anos depois.
Outro tópico sensível da produção vem de Thiago Macêdo Correia, produtor com quem Martins divide o roteiro. Das tarefas de casa às gravações de “Caverna do Dragão”, o trio também se preocupa com apresentações do colégio. Aficionado por música, Cassinho se prontifica a escrever uma letra original. É uma maneira de desabafar sobre a sua identidade sufocada.
Homem gay, Macêdo Correia assina a canção e é um dos quatro sócios da produtora de Contagem. Criada por ele, Maurílio, André Novais Oliveira e Gabriel Martins, a produtora independente celebrou uma década e meia em 2024. Foi o mesmo ano em que o grupo lançou sua própria distribuidora, a Malute, e inaugurou uma nova fase ao lançar a premiada comédia romântica “O Dia que Te Conheci“, de Novais Oliveira.
Embora “O Último Episódio” mergulhe em outro gênero nunca antes explorado pelos realizadores, Macêdo Correia explica que a trajetória é natural. Não faz parte de uma tentativa de reinventar o quarteto, cujas credenciais, principalmente os primeiros curtas, são estudadas por diretores em formação.
“Acima de tudo, nós somos do público. Nossa felicidade em fazer cinema vem do fato de que podemos produzir o que gostaríamos de ver. Diante do que tem sido feito no Brasil, nos parece legítimo falar sobre o que nos interessa. Os nossos projetos são sempre motivados pelo que vem de dentro, nunca por uma pauta ou pela vontade de simplesmente suprir algo que ainda não fizemos”, afirma o produtor.
Ele diz que “Marte Um“, lançado em 2022, ajudou a Filmes de Plástico a atingir um público além do habitual por coincidência. Dirigido por Gabriel —que participa de “O Último Episódio” como professor da rapaziada—, o longa acompanha o dia a dia de uma família do interior mineiro. Aluno dedicado, Deivinho, o caçula, sonha em visitar o espaço sideral. Sua imaginação é tão fértil quanto a de Erik.
“‘O Último Episódio’ abriu minha cabeça. Percebi que estar num filme é mais do que exercer o seu papel profissional, mas viver as histórias e as emoções que o cinema merece”, diz o ator Matheus Sampaio, que filmou o projeto aos 13 anos. Hoje, com 17, ele se prepara para começar a faculdade de cinema. Quem sabe um dia fará seu próprio final para o Mestre dos Magos e os seus discípulos.
