Enquanto a proximidade da COP30, em Belém, coloca o Brasil na vitrine mundial e mobiliza a classe política com discursos em defesa da natureza, os números do Orçamento federal expõem a prioridade dada por congressistas brasileiros ao tema: menos de 1% do montante bilionário de emendas parlamentares foi destinado ao longo de uma década para o ministério da área ambiental.
No mesmo período, deputados e senadores destinaram verbas públicas que levaram 1.648 máquinas pesadas aos estados da Amazônia, com um total de recursos pelo menos três vezes superior ao de ações de proteção do ambiente na região da floresta amazônica.
Agentes de fiscalização, autoridades, ambientalistas e lideranças indígenas ouvidos pela Folha associam a farta distribuição dos equipamentos ao desmate e à abertura de estradas ilegais por prefeituras e outros órgãos públicos, aliando discursos desenvolvimentistas a violações da lei.
A reportagem esteve no interior do Acre e observou os impactos ambientais por trás da falta de planejamento e de critérios técnicos no uso das emendas. O deputado federal Zezinho Barbary (PP-AC) usa sua fatia de verbas para regularizar a obra de uma estrada aberta com desmatamento ilegal no período em que ele próprio era prefeito do município de Porto Walter.
O valor geral de emendas reservadas (empenhadas, no jargão financeiro) para todas as áreas no Orçamento federal desde 2015 foi de R$ 298 bilhões, já com correção pelo índice IPCA, de acordo com os dados do portal oficial Siga Brasil.
Desse total, apenas 0,17% foi destinado à pasta ambiental —que, no atual governo Lula (PT), é chamada de Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Isso corresponde a R$ 520 milhões.
Mesmo essa verba não tem como foco a região amazônica, que deve ter Belém como capital federal de 10 a 21 de novembro devido à COP30, conferência da ONU (Organização das Nações Unidas), conforme aprovado pelo Congresso.
A soma das emendas destinadas ao ministério para emprego específico nos estados da Amazônia Legal, composta por Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão, foi de R$ 11,6 milhões —equivalente a 2,2% da verba recebida pela pasta ambiental.
Já os valores destinados ao Sudeste correspondem a cerca de 28% do total (R$ 147 milhões).
Ainda na perspectiva territorial, os montantes registrados como de âmbito nacional, que podem ter sido distribuídos para todos os estados, totalizam quase R$ 272 milhões. A maior parte desses valores veio de emendas de relator direcionadas ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) em 2020.
Levantamento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) encontrou emendas registradas com as subfunções “preservação e conservação ambiental” e “controle ambiental” enviadas para outros órgãos, mas em valores muito aquém de representar ao menos 1% de verbas para a área.
Ao todo, foram R$ 245,8 milhões enviados para os ministérios da Agricultura, Defesa, Desenvolvimento Regional e Saúde. Com esse orçamento, foram executadas ações como o Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), pesquisas em saúde ambiental, estratégias para a contenção de inundações e regularização fundiária.
Também ao longo de uma década a Amazônia Legal recebeu por meio das emendas um volume de máquinas pesadas sem precedentes, com um custo que ultrapassa os R$ 900 milhões. Os 1.648 equipamentos incluem trator de esteira e de pneus, escavadeira hidráulica, retroescavadeira, pá carregadeira, motoniveladora e rolo compactador. A apuração não considera tratores agrícolas, caminhões e carros.
Embora essas máquinas pesadas possam ter finalidades diversas, a disseminação delas na área de floresta é vista por técnicos ambientais como um fator agravante para desmatamento, abertura de estradas sem controle e instalação de garimpos ilegais.
Os principais distribuidores dos equipamentos na Amazônia foram o programa Calha Norte e a estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), que tiveram suas finalidades históricas desvirtuadas nos últimos anos para se tornarem os emendodutos preferenciais dos congressistas brasileiros.
O Calha Norte, campeão com 755 entregas desde 2015, é um tradicional projeto criado pelas Forças Armadas brasileiras há 40 anos que tinha como objetivo original a atuação militar estratégica nas fronteiras.
A sua desfiguração levou o governo federal a transferir o programa do Ministério da Defesa para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, que já tem sob sua responsabilidade a estatal vice-líder de distribuições na Amazônia Legal, a Codevasf, que entregou 440 máquinas na região.
Há vários paralelos nas trajetórias recentes do Calha Norte e da Codevasf. Um dos que mais chamam a atenção é o da expansão territorial nos últimos anos para abranger mais municípios de interesse de deputados e senadores.
A Codevasf hoje atua da Amazônia Legal ao litoral do Nordeste, enquanto o Calha Norte chega até a se afastar das regiões fronteiriças, alcançando o estado do Tocantins.
Turbinada por bilhões de reais em emendas parlamentares no governo Jair Bolsonaro, a Codevasf mudou sua vocação histórica de promover projetos de irrigação principalmente no Nordeste para se transformar em uma estatal entregadora de obras de pavimentação e máquinas até em regiões metropolitanas.
Ela expandiu sua atuação da região semiárida para os estados amazônicos do Pará, Tocantins, Amapá e Mato Grosso e teve esse novo perfil mantido sob Lula, assim como seu controle por congressistas ligados ao centrão.
O terceiro colocado no ranking de distribuição de máquinas pesadas na Amazônia Legal é o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, com 265 equipamentos. Na sequência, vem o Ministério da Agricultura e da Pecuária, responsável por 188 entregas na região.
Os levantamentos da Folha tomam como marco inicial 2015, pois foi naquele ano que uma alteração na Constituição Federal obrigou o Executivo a pagar as emendas individuais pedidas pelos congressistas e inaugurou um período de controle cada vez maior do Legislativo sobre o Orçamento, mudando a forma de fazer política no país.
Em uma década, os R$ 6 bilhões que os congressistas possuíam anualmente em emendas (em valores corrigidos) se diversificaram e explodiram para os cerca de R$ 50 bilhões previstos neste ano.
Naquela época, cada parlamentar tinha direito a no máximo R$ 16 milhões individualmente (equivalente a R$ 26 milhões hoje). Agora, cada deputado tem à disposição R$ 38 milhões, e cada senador, cerca de R$ 70 milhões para mandar a seus redutos eleitorais, sem contar os outros tipos de emendas coletivas.
O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, diz que há grande preocupação no órgão fiscalizador em relação ao uso ilegal das máquinas doadas com recursos de emendas.
“O que a gente percebe é uma utilização equivocada, uma utilização ilícita, em muitos lugares esse maquinário é um instrumento do crime. Da mesma forma que alguém usa uma arma para cometer um assalto, a máquina é o próprio instrumento para a prática do crime ambiental de desmatamento e de extração ilegal de madeira”, afirma Agostinho.
“Você tem trator de esteira sendo comprado e doado na Amazônia, não é para enterrar o lixo de uma cidade. Trator de esteira se usa para derrubar uma floresta, seja para abrir uma estrada ou abrir uma fazenda inteira. Então, a gente vê com muita preocupação esse tipo de situação, a gente precisa de respostas da sociedade e do poder público. Nós temos aí um desafio”, completa o presidente do Ibama.
Procurada pela Folha, a assessoria do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), enviou nota na qual afirma que “a Presidência do Senado Federal e do Congresso Nacional não emite juízo de valor sobre as escolhas alocativas de parlamentares”.
“A preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável são compromissos globais que exigem ação conjunta de governos, instituições, cidadãos e da comunidade internacional”, afirmou Alcolumbre na nota.
A reportagem também buscou a presidência da Câmara dos Deputados por meio de sua assessoria de imprensa, que afirmou que o tema deveria ser tratado por líderes de comissões orçamentárias da Casa. As lideranças foram procuradas, mas não se manifestaram.