O Sol e a Lua revestem a Gomide&Co em qualquer horário. Pintados sobre enormes cortinas de pano, eles protegem dois janelões de vidro e escondem outras obras da mostra coletiva “Transe”. Seja a estrela que esquenta o planeta, ou a bola em que o homem já andou, desenhos de homens, animais e seres místicos flutuam sobre os astros.
De dia, os raios luminosos dão vida às peças. De noite, as luzes da galeria projetam as ilustrações de Camile Sproesser pela rua afora. É o que descreve a artista, responsável por um dos trabalhos site specific da exposição. A mostra junta pinturas e esculturas que remetem à ideia de energia, presente em todas as ações e mudanças que fazem a vida funcionar.
“Dependemos muito desses dois elementos. O Sol ilumina o dia, faz com que as plantas cresçam e nos permite enxergar. Já a Lua, por sua vez, traz com a noite uma carga ligada ao subconsciente, daquilo que não é óbvio. Queria celebrar a influência desses astros sobre as nossas vidas”, diz Sproesser, que credita à intuição as criaturas de suas cortinas. Era importante preservar o mistério que atua sobre o tempo.
Entre fenômenos que envolvem a energia, o curador Fernando Ticoulat cita a formação de cristais —uma das obras põe um quartzo rosa sobre uma coluna de concreto—, a eletricidade de eletrodomésticos —a obra de José Resende na exposição é um grande pilar luminoso—, as transformações da água e o calor que emana do núcleo da Terra. Mas engana-se quem pensa que a ciência possui todas as respostas.
“Não existe narrativa ou discurso. Uma palavra-chave para a pesquisa era ‘esotérico‘. Sempre pensei que o termo tinha ligação com o misticismo e a bruxaria. Mas o dicionário o define como um ‘conhecimento fechado em si’. Não tem nada a ver com a religião. Nós atribuímos esse significado”, afirma ele, responsável pelo texto crítico, ao dizer que existe esoterismo em extrair do mundo círculos e triângulos.
São formas geométricas que se repetem bastante pela mostra. No interior de duas esferas surge uma pirâmide composta por grãos de areia. Ao centralizar elementos do solo em sua peça abstrata, Hércules Barsotti conecta a imaginação aos elementos da natureza.
Por sua vez, as mandalas da artista Mira Schendel reúnem cores vibrantes e formas diversas. Em aquarela, tons quentes se concentram no interior das esferas, divididas em camadas que lembram a estrutura do planeta.
Isso fica ainda mais claro numa das pinturas de Montez Magno, que divide a Terra em círculos. O núcleo exposto parece observar o espectador. Essa troca entre a obra e quem a vê também é evidente em um trabalho de Rubens Gerchman. Ao pintar círculos, triângulos e quadrados que dão unidade a uma coisa só, ele pontua o centro da imagem com um olho humano.
“A natureza mostra uma série de equilíbrios e ordens internas que, muitas vezes, exigem uma abstração da nossa parte. A geometria perpassa todos os trabalhos aqui presentes e está muito ligada à natureza e à espiritualidade. Ela é sempre uma abstração do real”, diz Luiza Crosman, autora da outra peça, como “O Dia” e “A Noite” de Sproesser, feita especialmente para o espaço da galeria.
Reconhecida como elemento peculiar do local, uma coluna branca se impõe no centro do salão. Em “Ascensão” ela torna uma espécie de monolito. Entre tons de azul e variações de cinza, cada face da pilastra é revestida por cores diferentes. Pontos brancos sugerem estrelas e rastros de giz lembram um tipo de poeira cósmica.
A obra resgata o cosmos como assunto recorrente da artista e ela cita a escada de Jacó como referência. A imagem bíblica diz respeito a uma visão que veio ao profeta em um sonho: uma ampla escadaria capaz de interligar a terra e o céu.
Segundo Crosman, cada lado da coluna seria um degrau, um diagrama diferente ao se pensar a elevação do homem a um estado maior. É possível que nessa outra dimensão predomine a linguagem da americana Karla Knight, que participa de “Transe” com uma obra.
Retangulares, suas pinturas sugerem dialetos de outros planetas. De imagens próximas de espaçonaves, olhos flutuantes que chamam para outra realidade, à sistematização de símbolos que lembram hieróglifos do Egito antigo, tudo nos leva a crer que a artista já conheceu extraterrestres.
“Com a linguagem imaginária que inventei, não sei se ela significa alguma coisa. Pode ser totalmente sem sentido. Mas sinto que sou uma ponte entre dois mundos”, disse Knight em entrevista ao New York Times em 2022.
A julgar pelo entusiasmo de Ticoulat em relação a uma das obras, o irracional é o grande guia da mostra. Criada por Waltercio Caldas, a peça em questão é um mistério que perdura há décadas. Numa caixa preta, alfinetes distintos estão categoricamente dispostos.
“São ‘As Sete Estrelas do Silêncio’. Elas já foram expostas centenas de vezes. Não existe nada que explique esse enigma”, diz ele. “Não há o que entender aqui. Assim é tudo mais legal.”