Considerada um exemplo mundial na reciclagem de vidro, a Alemanha voltou a ganhar destaque em meio à discussão sobre falsificação de bebidas com metanol no Brasil.
O país europeu alcança uma taxa de devolução de 98% de garrafas de vidro. É a ponta de lança de um dos mais completos esquemas de reciclagem no planeta (69%, segundo a OCDE). Ainda assim, não imune a polêmicas e discussões.
Parte de uma legislação em vigor desde 1972, o reaproveitamento do vidro é um caso de sucesso também por raízes históricas. Os hábitos de consumo alemão, pautados por economia e uma estrita recusa ao desperdício, vem do século 19, quando surgiram as primeiras normas sobre o assunto.
Um passeio a qualquer supermercado ou loja de conveniência mostra o resultado da política. A maior parte dos vasilhames de bebidas, assim como uma porção considerável das embalagens de alimentos, é de vidro. Nem as latas de alumínio, amplamente adotadas no Brasil, fazem frente às garrafas. Há uma ideia generalizada de que a lata consome energia demais para ser fabricada, mesmo quando reciclada, pesando então a consciência ambiental, outra característica alemã.
Hábitos à parte, o motor da reciclagem é puramente econômico e segue a mesma regra que existia largamente no Brasil até os anos 1970: paga-se pelo líquido e também pelo casco. Se for de vidro, oito 8 centavos de euro (R$ 0,47); se for lata ou PET, 25 centavos de euro (R$ 1,52). Levando em conta que uma cerveja de 500 ml, só o líquido, custa em média de 70 centavos de euro a € 1,20, fica fácil entender a preferência pelo vidro.
A matemática é evidente também nos tíquetes de compra, em que os preços dos vasilhames são discriminados. E ainda que o peso e a praticidade das embalagens de alumínio e plástico mantenha algum apelo a olhos estrangeiros, é difícil flagrar os alemães com uma garrafa que não seja de vidro nas mãos —em Berlim, bebe-se na rua, no metrô, em qualquer lugar, seja a caminho da balada seja na volta do trabalho.
É justamente aí que surge a última discussão do setor: o casco por 8 centavos não seria motivação suficiente para fazer os consumidores levarem o casco para a reciclagem. Segundo a Associação de Servidores Municipais da Alemanha, as garrafas de vidro estão sendo deixadas em cada vez maior quantidade no espaço público de grandes cidades como Hamburgo, Colônia, Frankfurt e Dusseldorf.
Eventos de rua, sem proporção ou condições de segurança para restrição de embalagens, são especialmente problemáticos. O lixo recolhido da via pública não tem separação, como ocorre em residências, comércios e escritórios —rigorosa a ponto de haver fiscalização com chips e, em alguns locais, até com inteligência artificial.
Há uma questão adicional no caso das garrafas deixadas na rua, que é uma espécie de solidariedade silenciosa com aqueles que percebem o valor do “pfand” (o depósito), como renda ou mesmo sobrevivência. Na capital alemã e em outras metrópoles muitos consumidores deixam os vasilhames em bancos de praça, batentes de porta e janelas ou mesmo próximo a latas de lixo para serem mais facilmente recolhidas por quem precisa.
Quanto mais visível, melhor, pois evita que o interessado tenha que vasculhar as lixeiras, o que, no fim das contas, acaba acontecendo de qualquer maneira.
Ainda que esteja longe da construção social que se tornou no Brasil, esse universo ainda que pequeno de catadores usa as mesmas máquinas de reciclagem disponíveis aos consumidores em supermercados e shoppings. O aparelho engole qualquer vasilhame de vidro, plástico ou alumínio que esteja na cadeia de reciclagem alemã, identificada por um símbolo ou às vezes apenas citada nos rótulos.
Garrafas de vinho e destilados não são aceitas e precisam ser descartadas em recipientes apropriados nas ruas ou condomínios, geralmente separadas por cor. Uma reciclagem eficiente, portanto, ainda que um grande avanço ambiental, não daria conta sozinha da crise de bebidas adulteradas no Brasil.
Como mostou a Folha, a falta de fiscalização no descarte das garrafas facilita a falsificação de bebidas com metanol.
Ao fim da coleta, a máquina de reciclagem emite um tíquete com código de barras que pode ser resgatado no caixa do estabelecimento em dinheiro vivo ou como desconto em compras.
A associação de funcionários públicos, assim como fabricantes menores de cerveja e refrigerante, defende um aumento no preço dos cascos de vidro. A origem dos oito centavos de euro não é arbitrária; foi calculada a partir dos 15 centavos de marco alemão cobrados pela indústria antes da adoção da moeda comum na Europa, em 2002.
As grandes cervejarias, no entanto, refutam qualquer mudança no “pfand” do vidro. O grande ator do setor diz que, se uma garrafa nova custa 20 centavos de euro, a reciclada tem que necessariamente custar menos; caso contrário, a indústria só usará novas.
O governo alemão montou um grupo de trabalho para debater a questão, mas já adianta que uma solução deveria passar pela União Europeia. Na Áustria, debate parecido fez o casco de 500 ml de cerveja subir de 6 centavos para 20 centavos de euro.
Segundo as cervejarias, o passo era necessário para fazer frente a 6% de garrafas desperdiçadas em lixo comum. “Os consumidores estão tomando mais cuidado com as garrafas agora”, disse em comunicado a associação do setor