Wagner Moura é um inimigo do povo, de acordo com três acusações absolutamente distintas. A primeira delas, real, é obra de deputados bolsonaristas que fazem campanha para que o ator seja investigado pela Casa Branca, na esteira das sanções de Donald Trump a autoridades brasileiras.
A segunda, nas telas, é fruto de um embate com empresários e policiais em “O Agente Secreto“. A terceira e última, nos palcos, foi a maneira que a diretora Christiane Jatahy encontrou para fazer Moura retornar ao teatro após um hiato de 16 anos.
Em “Um Julgamento”, o ator encarna Thomas Stockmann, persona non grata na cidadezinha onde se passa “Um Inimigo do Povo”, clássico do norueguês Henrik Ibsen. A peça derivada escrita por ele, Jatahy e Lucas Paraizo imagina como seria a defesa do personagem diante de um tribunal, anos depois de denunciar que o balneário que é meio de subsistência de seus conterrâneos está com as águas contaminadas.
“Os personagens sempre são, para mim, uma amálgama entre ele e eu mesmo. São o resultado do que eu faria se estivesse naquela situação. Você dá verdade aos personagens quando puxa eles para você, e isso casa muito com o trabalho da Chris”, afirma Moura.
Sobre a perseguição dos bolsonaristas, ele acha a situação ridícula. “É muito vira-lata, é muito colonizado”, diz sobre o pedido do deputado federal Gustavo Gayer, do PL, para que o governo americano o monitore. “Vai contra a liberdade de expressão que a própria direita prega para esconder o seu discurso de ódio. Se forem me investigar, eu estou de boa.”
Moura vive atualmente nos Estados Unidos, mas voltou ao Brasil para as temporadas de “Um Julgamento” em Salvador e no Rio de Janeiro. Esta é a sua primeira peça desde o “Hamlet” dirigido por Aderbal Freire-Filho, que causou frenesi na cena teatral em 2009. Neste meio tempo, o ator se dedicou a filmes e séries, no Brasil e lá fora.
Com “Elysium”, blockbuster de 2013, fez sua estreia em Hollywood. Dois anos depois, em “Narcos”, viveu o traficante colombiano Pablo Escobar e recebeu uma indicação ao Globo de Ouro. Em “Guerra Civil“, do ano passado, surpreendeu as bilheterias americanas com um drama distópico que capturou a polarização nos Estados Unidos.
E finalmente, neste ano, se tornou o primeiro ator brasileiro a vencer o prêmio de atuação do Festival de Cannes, com “O Agente Secreto“. Revistas estrangeiras, como a Variety, já apostam em Moura entre os indicados ao próximo Oscar, algo que ele comemora, mas de forma contida, ciente de que ainda há chão até o prêmio.
Como foi voltar aos palcos depois de 16 anos?
Foi massa. Fez muito sentido estrear essa peça aqui em Salvador. Estava cercado de gente conhecida, com quem tinha trabalhado quando eu comecei. Salvador é uma cidade muito importante para mim, eu gosto tanto daqui que meu filho se chama Salvador. Sou fruto de uma cena cultural da Bahia, que esteve em ebulição nos anos 1990, e aqui eu me sinto protegido.
Por que decidiu retornar agora?
Eu estava querendo já, porque a experiência do “Hamlet” foi muito forte. Eu tenho a consciência de que sou um ator de teatro, e um ator que se forma no teatro precisa eventualmente voltar a ele. Agora, o timing foi o encontro com a Chris [Christiane Jatahy]. A gente foi vendo as nossas agendas e calhou de ser agora.
O personagem que você vive, Thomas Stockmann, foi reescrito para ter vários paralelos com você, da idade ao pensamento político.
Os personagens sempre são, para mim, uma amálgama entre ele e eu mesmo. São o resultado do que eu faria se estivesse naquela situação. Você dá verdade aos personagens quando puxa eles para você, e isso casa muito com o trabalho da Chris. Tem muita coisa ali que sou eu mesmo dizendo.
A peça estreia na esteira do julgamento da trama golpista encabeçada por Jair Bolsonaro, marcada por uma guerra de versões. Vocês buscaram construir um paralelo entre realidade e ficção?
Exatamente. Havia no julgamento versões da verdade, não fatos. Não à toa a direita tem a produtora de filmes Brasil Paralelo, que é o título perfeito. O Donald Trump vive numa realidade paralela e a expande para um bocado de gente. Eu acho isso muito assustador. Eu não sou uma pessoa medrosa, mas isso é uma coisa que me assusta, porque tira o chão. Como responder a essas pessoas se a gente não vive no mesmo espaço mental, se a gente não fala a mesma língua? Como a gente vai conversar?
Você tem receio dos deputados bolsonaristas que pediram que você seja investigado pelo governo Trump, por dizer que os americanos estão com inveja do Brasil por causa do julgamento de Bolsonaro?
É ridículo. É muito vira-lata, muito colonizado. É tipo chamar a professora: “Tia, o Wagner está fazendo sei lá o quê”. Para mim essas ameaças não querem dizer nada, porque se eu for investigado e punido pelas autoridades americanas, esta vai ser a maior contradição da direita do mundo. Vai contra a liberdade de expressão que a direita prega para esconder o seu discurso de ódio.
Agora, discurso de ódio não é liberdade de expressão. Discurso de ódio é discurso de ódio. Se você fala algo e isso acarreta ataques, mortes, ódio, isso não é liberdade de expressão. No meu caso, o que eu disse e vou continuar dizendo é que há uma ascendência de uma força autocrática nos Estados Unidos. É fato. A suspensão do show do Jimmy Kimmel é louca, é sem precedentes. É isso aí, se forem me investigar, eu estou de boa. Vai ser uma contradição louca e interessante.
Há um momento na peça em que seu personagem diz que a democracia permite que uma maioria de imbecis persigam uma minoria. A democracia falhou, então?
Nossa democracia não é falha. Inclusive, a democracia brasileira está no seu melhor momento. A gente está tirando onda dos americanos. Aquele discurso da peça é sobre a democracia, mas mais do que isso, é sobre a verdade, sobre como o ocaso da verdade mina a democracia. É um discurso que entra num terreno pessoal.
A democracia é tema central de ‘O Agente Secreto’, que vai tentar uma vaga no próximo Oscar. Como estão as expectativas?
Eu acho que é muito cedo para ficar falando disso, porque tem um monte de filme para estrear, tem um chão enorme pela frente. Mas o que eu vejo é que “O Agente” está muito amparado. Há um respeito pelo cinema do Kleber [Mendonça Filho] e a Neon [distribuidora nos EUA] tem muita força, eles estão fazendo um trabalho bem forte. E quando você está fazendo tudo certo, não tem muito o que pensar. As coisas vêm ou não vêm, mas estamos fazendo tudo direitinho.
Você vem sendo apontado por veículos americanos, como a Variety, como forte concorrente ao Oscar de melhor ator. Como é receber toda essa atenção?
Com toda a honestidade, eu recebi isso tranquilo. Massa, ótimo, eu fico felizão, mas tranquilo. A temporada é muito dinâmica, não dá para achar nada. Eu recebo o ataque das mentes vira-latas e colonizadas do Congresso brasileiro com a mesma tranquilidade que eu recebo essa parada da Variety. Vai vir o que for para vir.
Essas apostas começaram depois que você venceu o prêmio de atuação em Cannes. Foi frustrante não estar lá na cerimônia?
Não estar lá foi uma merda. Era um sábado, meu dia de folga, e o filme que eu estava gravando em Londres me botou para filmar umas coisas que não eram necessárias. Eu não protestei, porque era meu trabalho. Mas depois, receber o prêmio naquela sessão do filme no Louvre, foi lindo. Quando eu vi a Juliette Binoche –porque eu sou muito fã dela, talvez seja minha atriz favorita do cinema– eu fiquei muito bobão. Ela é espetacular.
Esse prêmio deve ter aberto portas para você.
Eu tenho recebido umas coisas legais para ler, mas eu nem estou conseguindo, com a peça e a campanha de “O Agente”. As coisas chegam e eu não consigo ler, mas está tudo certo. Eu estou muito feliz com essa peça, com esse filme e com a minha vida.
O repórter viajou a convite da produção da peça ‘Um Julgamento’