“Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-lo”. Nas frases de “A mulher dos pés descalços”, Scholastique Mukasonga lamenta não ter atendido a ordem de Stefania de ter seu corpo coberto depois de morta.
No livro, a escritora ruandesa escreve sobre sua mãe e sobre todas as outras. Sobre o genocídio em Ruanda, e todos os outros.
“Mãezinha, eu não estava lá para cobrir o seu corpo, e tenho apenas palavras –palavras de uma língua que você não entendia– para realizar aquilo que você me pediu. E estou sozinha com minhas pobres palavras e com minhas frases, na página do caderno, tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente.”
Ao lado de Itamar Vieira Junior, Scholastique foi a autora homenageada do 13º Festival Literário de Araxá, em Minas Gerais. Com Afonso Borges, Jeferson Tenório e Sérgio Abranches, fui uma das curadoras desse festival.
Em minha tese de doutorado, as palavras de Scholastique foram fundamentais para escrever sobre o genocídio negro no Brasil. Em Araxá, nos conectaram à dor de Gaza, do Congo, do Sudão.
Em uma das mesas, Scholastique descreveu o gesto íntimo que atravessa sua obra: mães que, mesmo cercadas por violência, guardam o fogo para que os filhos sobrevivam e tenham força e valores para seguir vivendo.
Na década de 1930, a colonização belga impôs no território que hoje é a Ruanda identidades étnicas rígidas, hutu ou tutsi, em carteiras de identidade. Desde os anos 1950, massacres e expulsões anunciavam a tragédia que viria. Famílias como a de Mukasonga foram deportadas para regiões inóspitas, como Nyamata.
Em 1994, duas décadas depois de Scholastique ter chegado à fronteira do Burundi com o irmão, o ódio acumulado explodiu: em cem dias, cerca de 800 mil tutsis foram assassinados, dentre eles, 37 pessoas de sua família. Salva graças ao planejamento detalhado da mãe, percorreu 40 quilômetros a pé em 6 horas.
Exilada na França desde 1992, assumiu a missão de ser memória e testemunho dos que não sobreviveram e dos que não podiam falar. “Um sobrevivente perde a palavra. Os livros a recuperam”, disse em Araxá, autora de cinco livros já publicados no Brasil pela editora Nós, com mais um a ser lançado.
Ruanda do presente não apagou o passado, insistiu Scholastique, mas se recusou ficar refém dele. Logo depois do genocídio, ruandeses queimaram as carteiras de identidade étnica, criaram uma cidadania comum e incluíram o genocídio nos currículos escolares. Mukasonga aponta que a reconciliação só acontece quando não se esconde o passado e quando cada geração conhece a violência que não pode se repetir. Uma lição necessária ao Brasil.
De um país devastado por massacres, Ruanda tem emergido como um dos mais importantes da África, que se destaca pelo protagonismo das mulheres na política e o desenvolvimento de tecnologias digitais, ambos pavimentados pela memória como infraestrutura social.
Ao final do festival, a leitura em voz alta do sonho com o qual Scholastique termina o livro:
“Ao pé do altar de Jesus, ao pé da estátua de Maria, vejo vários montes de ossadas: esqueletos de homens, de mulheres, de crianças de Nyamata espalhados pelo chão da igreja.
— Vocês reconhecem quem são? pergunta Cândida. Olhe bem, eles estão aqui e eu estou com eles, você reconhece os seus? Reconhece Stefania?
Cândida é apenas uma sombra cada vez mais tênue e a voz dela é só um eco distante:
— Você tem um pano grande suficiente para cobrir todos eles… para cobrir todos… todos…?”
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