Como sustentar a escrita quando cada palavra abre um confronto com o passado? “Memória de Menina”, cuja escrita Annie Ernaux diz ter adiado por 50 anos, decide dissociar quem narra de quem é narrado.
Publicado originalmente em 2016, o livro sai agora no Brasil com tradução de Mariana Delfini. Na impossibilidade de resgatar a jovem de 18 anos que foi, a autora convoca Annie D., seu duplo correspondente, para narrar aquela jovem do verão de 1958.
Em busca das palavras exatas, Ernaux apresenta o conflito que a própria escrita gera nela. Para esquecer essa experiência, seria necessário ter amnésia em relação não só de si, mas também do mundo —então ela escreve. Por isso, em certa altura do texto, indaga: “Será que preciso fundir a menina de 58 e a mulher de 2014 num ‘eu’?”.
O romance narra o primeiro verão que Annie Duschene passa longe de casa. “Eu a vejo chegando na colônia como uma potra que fugiu do cercado, sozinha e livre pela primeira vez, um pouco receosa.”
Foi lá que ela teve sua primeira experiência sexual. A cena é retratada de forma brutal, mas na época não havia discussões sobre consentimento. É nesse limiar da impossibilidade de resgatar a memória que Ernaux, 50 anos depois, encontra coragem e faz da impossibilidade uma poética própria. Mais do que um livro que se propõe a construir imagens e uma cadência lógica, este é um livro de sensações.
No jogo de alternância dos pronomes “eu” e “ela”, Ernaux lança dúvidas sobre a enunciação do autobiógrafo. “À medida que sigo em frente, desaparece uma espécie de simplicidade anterior da narrativa guardada na minha memória. […] Não estou construindo uma personagem de ficção. Estou desconstruindo a menina que fui.”
A narradora com frequência revela o embate dessa escrita, mas também a urgência de escrever sobre a menina de 1958. Afinal, ela é a única que se lembra e por isso insiste, pois não suporta a ideia de morrer sem ter escrito sobre ela.
Annie D., filha única, superprotegida e privada da liberdade, tem admiração por tudo que soa emancipado, moderno e na moda. Seu destino naquele verão era a colônia S., para ser monitora, a 15 dias de completar 18 anos. Seu desejo naquele momento, além de se livrar da mãe, era viver uma história de amor.
Até então, sua vida mais intensa acontecia nos livros que ela devorava. “Ela não tem um eu definido, mas alguns ‘eus’ que vão de um livro para o outro.”
Na tentativa de reencontrar a sua linguagem, Ernaux se depara com a incapacidade de recompor o discurso anterior de Annie Duschene. Então, resta captar fragmentos de cartas e diários da época, já que não há fotos desse período.
Esse gesto nos leva a pensar sobre que corpo é forjado a partir de uma escrita de si. O que aconteceu com Annie D. naquele verão é algo que ainda reverbera na Annie que escreve, como se ao longo da leitura tivéssemos a reconstituição deste corpo narrado, de forma fragmentada e incompleta.
A corporeidade feminina é apresentada de forma violada e cindida. Ora controlado pelos pais, pelas freiras e depois pelos homens, esse corpo se reconstrói na escrita.
Logo de início, a convivência com os meninos a desconcerta, tudo é novo para ela. É nesse período que realiza o sonho de ir a um bailinho, e é lá que ela conhece H., monitor-chefe pelo qual se apaixona.
H. a convida para ir a um lugar mais reservado depois da dança. Ele a puxa violentamente e age rápido demais. Ernaux se questiona sobre o que pensou Annie D. naquela situação. Já era tarde para voltar atrás.
A sequência se desenrola em uma série de conflitos; ela é julgada, fica deprimida e desenvolve bulimia. Acompanhamos o despertar dela para questões de gênero. Ernaux converte vários tempos no presente; não só rememora o que aconteceu, mas também renomeia.
Sua escrita tensiona o tempo todo a impossibilidade de recuperar exatamente o que aconteceu e também a necessidade de renomear acontecimentos que à época não eram discutidos. “Ele está indo rápido demais, ela não está pronta para tanta pressa, tanto entusiasmo.”
Ernaux não escreve para reconstruir fielmente o passado, mas para expor suas fissuras. Nesse movimento de avanço e retorno, transforma a impossibilidade em método e a ferida em literatura.